27.1.08

Tempo-livre

A cadeira voando pelo oitavo andar. "Miau", estridente como o anel de Saturno cortando os olhos. Dona Lúcia nunca teve filhos, mas tinha aqueles sete gatos, entre eles o Floquinho. A pele branca como a neve, agora tingida com o ferro vermelho do próprio sangue. Dizia-se que Floquinho não acreditava em chuva de canivetes.

- Você começa a beber e perde o controle!!! Se acalme!

Um pé fora, o outro dentro da realidade: a existência boiando à toa como o feijão ruim na bacia com água. Pense! Do que seria a humanidade sem a tragédia sem sentido de um gato branco morto a cadeirada?

- Floquinho!? Fala com a mamãe, querido!

Ciúme, uma faca de dois gumes, expressão mais pura da dialética de amar. Luta de classes, sistemas patriarcais com estruturas abaladas, ah!, o amor, pura e simples questão da economia sexual. Quanto mais se quer, menos te tem!, querida! Sob as garras afiadas da submissão, o amor persiste. Mulher de malandro, proletária do proletariado.

- Mulher minha não sai na rua com essa roupa de puta! Vá se trocar senão te mato de porrada!

A tia velha fritava polenta quando ouviu o barulhão. O peso de oito andares numa só tacada. Era uma boa cadeira aquela, vai fazer falta... fazia como ninguém seu trabalho de sustentar pelo rabo a miséria da humana arquitetura.

- Tomar no teu cu, vadia! Vai desfilar o rabo no quarteirão?

No outro dia de manhã, a mini-saia dobrada na gaveta a espera de um futuro qualquer. A velha solteira mandou comprar um caixão de bebê para o gato favorito. No quintal, uma cruz e um vaso de flores de pé. No velório, um só velando entre o ar engordurado e o cheiro de fubá. E descendo pelo elevador, como se nada tivesse acontecido, ele e ela de mãos dadas, caminhando por dentro da nuvem de silêncio costumeira que pressagia todos os miseráveis dias de labuta.