3.10.09

Sobre a loucura em seu sentido banal

Lembrei-me hoje de um poema que escrevi há uns dois anos atrás, logo depois que acordei com uma ressaca física e moral. Foi no auge de um tempo em que eu achava que ia pirar, que eu ia acordar no outro dia sem conseguir levantar da cama e ia esperar alguém do manicômio vir me buscar enquanto minha mãe chorava ao fundo abraçada no ombro do meu pai que olhava pra mim com aquele olhar de nojo e reprovação pensando em quanto dinheiro ele ia gastar pra manter o filho esquizofrênico pelo resto da vida preso no hospício como um peso inútil para a vida da família. Eu realmente achei que daquele dia não passava, que se houvesse um limite para a razão dos homens, eu estava exatamente ali, surfando sobre aquela linha tênue. Tudo aquilo porque, um dia antes, fiquei bêbado de cair no chão - e realmente caí, numa poça de lama de cerveja, no meio de umas 4 mil pessoas que batiam seus pés furiosos na terra e dançavam como se fossem elefantes numa arena de rodeio. E, pensando sobre todo esse papo de transgressão, drogas, hippies, Geração Beat, literatura e porraloquice, me dei conta de que, ao contrário de Kerouac e Ginsberg, eu nunca me orgulhei de ter passado por uma situação dessas.

Hoje, relendo aquele poema, vi que eu não queria tombar pro outro lado da lua, que eu nunca me orgulhei daquilo, que eu não achava que cruzar a linha da sanidade poderia fazer minha mente expandir, ou algo que o valha. Aquela vontade incontrolável que eu tive de escrever um longo poema de 3 páginas sobre a loucura foi um canto de horror, de medo, de estranhamento. O mais engraçado é que, enquanto meus amigos me olhavam com nojo naquela posição deplorável , pensando que aquilo tudo não passava de fingimento, de frescura, etc. e etc. (disseram-me, naquele dia, que eu fazia aquilo para chamar a atenção, e que por isso deveriam me deixar sozinho........ como se o louco, preso ao silêncio do manicômio, fosse um espetáculo maior que o palhaço que clama pela atenção do público do circo), um outro amigo nosso era venerado porque tinha se jogado bêbado de cima do palco e quase quebrado o braço num momento de êxtase de alegria. "Meu, cê é louco, cê é pirado!", as pessoas riam em volta dele. Não sei porquê, mas a idéia de transgressão, no senso comum, está muito mais ligada a essa "loucura" risonha, a esse lado cômico da "loucura", do que da experiência trágica de horror e desespero, do já-estar-aí da morte. Não há espaço para a dor em nossos tempos. É mais fácil acreditar na felicidade entorpecida do que nos desesperos incontroláveis. E é por isso que, a meu ver, as sombras que rodeiam a obra e a vida de William Burroughs não tem absolutamente nada a ver com a felicidade colorida dos hippies e da contracultura. E, em certo sentido, creio que eu possa dizer o mesmo de Thompson. Quem lê em Thompson um ícone da contracultura, um palhaço drogado fazendo arroaças divertidas, um irônico que transforma desgraça em riso (porque, afinal, é só o riso que importa), está lendo o lado mais "Mtv" de Thompson. O que me intriga em sua escrita é justamente o avesso disso, a experiência das trevas, da insanidade que o circunda e que o obriga a escrever mesmo que ele não queira, a escrita que é uma maldição.

Existem pessoas que ficam a vida toda em busca do poema perfeito, construindo sua literatura tijolo por tijolo, pensando em cada palavra e em cada som que está dentro do poema, tentando aperfeiçoá-lo cada vez mais para que ele posssa, enfim, transformar-se em um jogo semiótico que, sob a superície árida dos signos, esconde nada mais que os caprichos arquitetônicos de um Arnaldo Antunes. Esses acham que é o escritor quem deve perseguir a literatura, que o poeta é uma espécie de caçador que deve enjaular as palavras e colocá-las no zoológico para que as crianças batam palmas. Mas eu aprendi naquele dia justamente o contrário, que é a literatura que te persegue, não mais que de repente, nos momentos mais estranhos e bizarros da sua vida. Quando acordei com ressaca, não senti vontade de comer, nem de beber água... só senti uma vontade incontrolável de escrever aquele poema, aqueles "7 passos para se produzir uma loucura", que apareceram na tela do computador muito antes de eu pensar em como eles seriam. No momento de desespero, em que você realmente acha que é o último segundo da tua vida, não resta muito tempo para pensar. Hoje, vejo que aquele poema é uma parte do meu lado Burroughs, meu lado Thompson, meu lado trevas que transbordou naquela manhã de domingo. É quando a literatura te força a escrever em vez de você se forçar a fazer literatura. Uma espécie de maldição que acompanha aqueles que, em algum momento da vida, se vêem em cima do frágil muro que separa a loucura da razão e os palhaços dos homens sujos.



E agora, com a tranquilidade que só a monotonia pode proporcionar, eu posso dizer que o único orgulho que tive dessa experiência toda foi o de ter sentido o sincero desespero de quem nunca quis estar ali naquele momento.

1 Comments:

Blogger Mura said...

Muito interessante.
Deu vontade de conhecer Thompson e Burroughs.
Abraaa

5:03 da tarde  

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