30.3.07

Traído pela sorte

A história se fala em toda a parte. A Maria Amaral, menina moça dos vinte e poucos anos, marcou casório com o Betão, aquele que o pai e a mãe morreram, moço pobre que mora sozinho na cidadezinha do interior, o mesmo que quando adolescente deu pra se engraçar com a mãe do Judas Andrade. Até foi bem por isso que os dois melhores amigos se pegaram na briga feia, em meio à rua, dando escândalo na vizinhança, aos berros de “traidor! traidor!” – é desse dia a cicatriz na testa, o cortezinho marcado entre os olhos de Betão. Há que a mãe do Judas é daquelas viúvas atraentes, a mulher vivida na extrema necessidade, que disseram até as más línguas que foi tirada de bordel de luxo pelo marido rico, tudo às moitas. E foi num dia qualquer aí, quando o Judas tinha viajado sem nem avisar ninguém, que o Betão foi na casa do amigo bater palma: - “Bom dia, tia. Vim ver o Judas” - “É, mas o Judas não tá não. Viajou com um tio da fazenda, volta hoje mesmo. Achegue-se, você espera ele aqui em casa, toma um café comigo”. E o resto da história não é difícil se imaginar... foi bem que os dois rolaram na cama, que o Betão não resistiu à cruzada de perna da mulher, bem essa coisa. Disseram por aí que o Judas só descobriu porque o Betão não agüentou o fardo da culpa, e ele mesmo, numa atitude da muito macha, foi contar o ocorrido acidente, com intento da verdade perdoá-lo. Muito nobre do homem, levar tua mãe pra cama e te contar olhando nos olhos, na cara dura. Mas o Judas não entendia de nobrezas – a bem da verdade, nem queria entender –, e deu no que deu, na porradaria. Daí ficaram inimigos bravejados, até hoje, mesmo assim, sete anos depois do ocorrido. A mãe nega o até a morte, e o Judas, enquanto vivo, nela finge que acredita. E assim até deveria ser o fim da história, mas nem não é. Pois essa tal de Maria Amaral, que agora o Betão vai ser esposo, não é nada-mais nada-menos que a prima do Judas, filha da irmã de sua mãe. Bem por isso que o dito é registrado em cartório com sobrenome Amaral de Andrade. A Maria é menina boa, bonita, sempre de vestido claro, o cabelo trançado, olhos pra baixo... quietinha, nem uma palavra se não perguntarem. A santinha, daquelas mulher-de-filhos, das boas pra se casar. Mas o pai, Seo Juca Amaral, esse é casca dura, senhor de terras, fazendeiro bruto, daqueles que andam com a arma à mostra na cintura. A filha é sua boneca de louça, a única coisa boa que sobrou na vida do velho depois que enviuvou. A menina guardada a sete chaves, à boa honra. E isso tudo era coisa que atraía o Betão, homem nobre, homem bom, que queria casar com a moça, fazer família, botar criança no mundo. Assim, já com seus trinta e dois nas costas, quinze só de trabalho, já era tempo de tocar a vida, virar homem por completo. Não que gostasse tanto de Maria Amaral, que caísse de amores, a paixão derradeira, mas menina melhor não ia achar mesmo, e tem ainda as conveniências de casar com moça rica, de fino sobrenome. E foi que me contaram: Betão bateu na casa do Seo Amaral com as boas intenções, num domingo dia de família, na hora depois do almoço. Foi pra pedir a mão da moça nos formalmente, com anel de ouro e tudo mais. E agora a parte que menos se explica na razão: o pai, velho ranzinza, machão temido nas redondezas, aceitou o pedido do garoto Betão. Marcaram o noivado como os conformes, mas foi posto os porém: que durante o namoro, no meio tempo entre hoje e o casório, Betão não encostasse um dedo sequer na moça, não se encontrasse com a filha por nada nesse mundo. Estranho pedido, explicado assim por Seo Amaral: - “Minha falecida - Deus a tenha - sonhou em casar a menina pura, de vestido branco justificado. Não que desconfie de tua palavra, garoto, mas um pai prevenido é um pai seguro”. E assim ficou o combinado, que só na lua de mel ele fosse tocar a moça, e o primeiro beijo fosse só em cima do altar, depois que o padre autorizasse. E também assim foi o cumprido. Chegou o dia do casamento na fazenda do velho Amaral, onde a festa seria na casa grande e o sacramento na capelinha enfeitada de flores – todas brancas, ornando com a pureza da noiva. Os convidados estavam lá, todos da família da noiva, sentados nos bancos da igrejinha, vestidos de luxo, cochichando sobre as excentricidades do casal, os desconformes, a cara feia de Betão, aquela horrenda cicatriz na testa, entre os olhos. Não... não merecia Maria Amaral, moça de família rica, bonita como uma boneca, criada nos finos tratos da fazenda, casar com esse pobretão da cidade, moço sem eira nem beira. Ninguém não sabia algo desse rapaz, tal de Betão, homem sem história, filho-de-quem?, garoto qualquer. Judiação da Maria Amaral... um triste fim pra uma moça tão boa. Mas não adianta penar, se meter na vida dos outros. Deus sabe o que faz: o que há de haver haverá. Pois certo que a cerimônia começou com a marcha nupcial, e o noivo plantado no altar, esperando a noiva vir a seu encontro de véu e grinalda, carregada pelas mãos do pai, que por certo a dava com a dor no peito, já com a saudade martelando o coração. Pois já foi dito, corria o boato na cidade, que era estranha a atitude do velho Amaral, entregar a filha estimada assim, de qualquer maneira, a qualquer pé-rapado. Mas era fato concreto: estavam ali todos de prova: o noivo era aquele, a noiva, aquela, e o pai era o Amaral, que levava a moça pro sagrado sacramento, assim como a sua esposa sonhara. E foi que a moça chegou ao altar, lado a lado do futuro esposo, a fim de que a cerimônia prosseguisse como bem devia. O padre começou a ladainha, redizendo a vontade de Deus impressa na bíblia, que o homem devia cuidar de sua mulher, e que sua mulher deveria cuidar da casa e dos filhos, e uns cuidarem aos outros, e que a família devia ser um ninho de amor, que eram grandes as responsabilidades. E isso empolgava o jovem Betão, que ouvia aquilo como o futuro feliz escrito por Deus nas linhas tortas. E ao seguir dos ritos houve que o Padre perguntou: - “Senhor Gilberto de Jesus, é de livre e espontânea vontade que se aceita casar com a senhorita Maria Amaral”. E foi que Betão, ao ouvir seu sobrenome, o de-pobre verdadeiro, encheu o peito e respondeu o convicto “sim”. Assim também o padre perguntou à moça: - “Senhorita Maria Amaral, é de livre e espontânea vontade que se aceita casar com o senhor Gilberto de Jesus”. E veio o espanto e a emoção de Betão ao ouvir pela primeira vez a voz da menina com quem ia se casar dizendo um doce e tímido “sim”. Ao que tudo estaria terminado, era só o padre confirmar o matrimônio pra que os comes e bebes fossem servidos, e as danças durassem toda a madrugada, e a felicidade reinasse como nos contos de fadas. Mas não era bem essa a hora, porque a santa igreja é prevenida em sua justiça e manda o sacerdote perguntar “se alguém tem algum motivo para impedir esse casamento, que fale agora ou cale-se para sempre”. E assim foi perguntado. E o silêncio durou cinco segundos: cinco segundos de tensão no peito de Betão, que não via a hora de tudo se acabar pra que fosse embora à casa nova, à vida nova, felicidade. Mas eis que corta o silencio o grito de uma voz dura, meio rouca, bradando o convicto e certo “pois eu digo!”. Foi que entre os bancos da capela se levantou, devagarmente, ele, ele mesmo, o velho amigo, o das antigas, o Judas! Como é que não havia pensado antes naquilo, o Betão? Pois era claro que o primo viria ao casório e, inimigo, havia de aprontar alguma. E agora o esperado era que tirassem o Judas dali, levassem-no embora da igreja, que impedissem maior escândalo. Mas as verdades se justificaram no final da história: o sonho esvaiu-se. Houve que toda a família, os convidados, ficaram todos parados, ao não se mover. O pai, o Seo Juca Amaral, o mesmo que cedeu a mão de bom grado, que pediu pra que não se tocasse em sua filha por questão de honra, esse mesmo homem arrancou o revólver da cintura e colou bem na fuça do pobre Betão. E foi que o velho disse: “cabra que leva a mãe do amigo pra cama, que faz safadeza debaixo de teto de família honrada, que engana e corrompe o nome da boa família, que trai confiança de homens justos... esse cabra merece a morte traída, a morte à margem da felicidade”. Agora tudo se encaixava: era a grande armadilha, o dia da vingança, o fim da história. E assim foi que o velho Amaral entregou a arma ao Judas, e disse: “que você mesmo faça as honras, que faça o que tem que ser feito, meu sobrinho!”. E a última coisa que Betão viu antes do chumbo quente perfurar-lhe a cicatriz da testa, antes da bala entrar no meio dos córneos, explodindo os miolos pelo chão da igreja... a última coisa que ele viu foi um sorriso: o sorriso satisfeito do antigo amigo, o Judas Amaral, que logo depois de findado o serviço, juntou-se aos convidados para saborear o bolo e os docinhos da grande festa que havia de cortar a madrugada.