26.4.08

Perdido nas páginas de um boletim de ocorrência

Três carreiras e sete doses. Ela veio em casa daquele jeito e começou a gritar, como era de costume, e a criança acordou no berço chorando. Ali era o inferno, eu via que ela coçava o nariz e não parava quieta, não conseguia dormir, e confesso que eu já desconfiava que ia dar merda, por isso eu queria que ela dormisse logo, antes que a vizinhança a encontrasse naquele estado. Pedi pra ela dormir, mas não adiantou nada, o tiro saiu pela culatra e ela começou a gritar mais e mais e mais e reclamar do nosso casamento pra que todos ouvissem, e depois começou a bater as panelas e gritar que era pra eu ir embora de casa e largá-la sozinha na vida, que eu era o demônio e que ela só queria aproveitar a vida de merda que ela tinha, aproveitar enquanto ela era jovem e era bonita e podia fazer coisas novas. Eu tinha dó, eu sabia que ela estava mesmo era querendo botar a culpa em Deus e no mundo porque a gente casou por causa do bebê, sabe?, nunca quisemos de verdade, até porque ela nem tinha terminado a faculdade quando ficou grávida. Ela daria uma boa arquiteta, eu sei, mas não foi minha culpa, o que eu poderia fazer?, foi o acaso do destino ela embuxar com dezenove anos, e se a camisinha estourou ela também tem responsabilidade, não fiz isso sozinho, não é verdade?, naquele dia ela me achava o máximo, agora eu sou toda a merda da vida dela?, se ela é infeliz não precisa botar toda a culpa do mundo nas minhas costas... e pelo menos respeite o menino que dorme no berço com aquele rostinho inocente, afinal, é meu filho, é o filho dela, porra!, custa muito querer amar alguém uma vez na vida!?, custa não amaldiçoar a própria vida pelo menos uma noite!?, sentar na mesa sem reclamar do trabalho, do que a vida poderia ter sido!?, custa dizer "eu te amo"!?, e sempre que ela fazia aquilo eu pensava "até quando isso vai durar?", porque ela sempre, sempre!, sempre! ela chega de madrugada caindo no chão de tão drogada depois de gastar o pouco dinheiro que conseguimos para cuidar do bebê com aquela maldita farinha colombiana... seu delegado, eu não aguentava mais!, não aguentava!, ela vinha todo dia, todo dia a mesma coisa, e meu filho sofrendo, ela mesmo dizia que sofria, toda vez, que achava aquela vida uma merda, que ela ia fugir com um cara rico, que ia viajar de moto por aí, sei lá, qualquer coisa que a fizesse esquecer que o mundo não é fácil, que a vida bate na nossa porta sorrindo ironicamente e pede pra que a gente resista, pra que a gente aguente firme e não perca a cabeça... a verdade é que ela ainda era uma criança, tudo ficava nas minhas costas, eu que trabalhava, eu que comprava e trocava as fraldas, eu que limpava a cozinha, e ela só gastava o pouco dinheiro que tínhamos pra se entupir daquela merda! Eu te digo, seu delegado, não dava mais pra aguentar, meu filho não merecia isso, não merecia essa mãe, ele merecia um mundo bonito, ele queria brincar com crianças num parquinho e voltar pra casa e abraçar a mãe, contar pra ela sobre o seu dia sem que ela dissesse "vai pro quarto, moleque, cê tá me atrapalhando!", ele precisava de coisas normais, esse tipo de coisa normal, sabe?, ele merecia uma vida comum, o senhor não acha?, mas ela não achava isso, ela achava que ele era um estorvo, o coitadinho, e no fundo eu sempre soube que ela não me amava nem amava o menino, eu sempre soube que um dia ia acabar dando em merda, eu sempre desconfiei que ela não ia segurar as pontas............. mas assim?, desse jeito?, pular da janela do nono andar com a criança nos braços, na minha frente, sem que eu pudesse fazer nada?................................. eu choro todo dia, todo dia me lembro dos olhos dela, estalados como se não estivessem vendo nada além da própria morte.................................... meu filho não merecia, seu delegado.....................

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que TENSO!

gostei fo jeito que o texto fluiu.
abraço

12:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pinezi, Pinezi..."pare de agir feito um idiota", acabo de ler no seu orkut e isso, não sei porque, me arrancou algum sorriso.
Teu blog continua bom, rapaz... uma pena vc não investir na propaganda da coisa, mas de quando em quando eu passo por aqui e gosto do que leio.

9:25 da tarde  

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