29.11.09

A maldição de quem pensa é pensar que sabe

Sócrates certa vez disse "só sei que nada sei". Esta é uma daquelas frases que, se não tivesse contexto, simbolizaria a plena humildade daquele que se admite pequeno diante do mundo. Mas, na verdade, a frase era uma crítica aos sofistas e aos oráculos justamente por acharem que tinham a verdade, quando não a tinham. E por um movimento de ironia, Sócrates afirmará que não sabe, mas apenas para dizer que quem não sabe são os sofistas. Somente ele mesmo, o grande Sócrates, tinha o poder de conhecer a verdade, e isso porque ele usava o grande método, a dialética, que neutralizava todas as opiniões em favor de uma única, incontestável e universal verdade (a dele mesmo).

Quase dois milênios se passaram até que Descartes pudesse dizer o famoso "penso, logo existo", partindo assim da verdade mais incontestável de todas para então poder ter certeza de todas as outras coisas do mundo. E para nós, os modernos ateus, soa até estranho pensar que a segunda maior certeza de todas era a existência de Deus, já que Deus era a pura bondade e, portanto, a pura verdade, ao contrário do Gênio Mau e seus métodos traiçoeiros de iludir-nos. Foi assim que, numa só tacada, Descartes aliava a verdade do lado do bem, colocava Deus como o aliado do homem e o homem como o fundamento da verdade. Assim, o homem que estivesse aliado à verdade seria o bom homem, e aquele entregue às suas ilusões seria ou louco ou mau.

Mais alguns séculos e lá vem o jovem Marx, e sua belíssima teoria da alienação. Creio que fazemos uma grande injustiça quando dizemos que Freud descobriu que o homem não é senhor de si mesmo; creio que o primeiro a fazê-lo, ainda que tangencialmente, foi Marx. Porque, ainda que ele tenha sonhado com o socialismo, com esse estado da sociedade que era o próprio estado da verdade, fase hitórica onde o homem se conheceria por completo e estaria enfim ao lado do bem... mesmo assim, ele foi o primeiro a dizer que a natureza humana é uma natureza histórica e que, portanto, a condição natural do homem capitalista é a de ser um estranho a si mesmo, um "alienado". O "Deus" de Descartes é sim o socialismo de Marx; mas nunca Descartes admitiria que a verdade do homem atual, do homem presente, é a de ser um alienado.

Eu admiro Marx por sua coragem. Admiro os anarquistas que vieram a seguir. Admiro também muitos destes homens que acreditaram no que acreditavam, e se banhavam de sangue com armas na mão impondo uma guerra em nome da paz. Mas esse homem já morreu. E eu não quero ser esse homem. Creio que há um problema de quase todo filósofo: é que ele quer ter a verdade, é que ele quer tornar sua própria verdade a verdade do mundo. E só há uma coisa mais odiável ainda em um filósofo do que essa pretensão: é a pretensão de achar que a verdade e a consciência de si mesmos está sempre ao lado do Bem.

Toda espécie de utopia é baseada nessa idéia um tanto quanto antiga de que a verdade é uma coisa boa, de que a ignorância é uma coisa ruim, de que a consciência me faz ter algum controle sobre as coisas, de que a consciência me faz um homem melhor. Esta é uma idéia de que dificilmente nos livraremos. Anarquistas e marxistas continuam a criticar o nazismo por ser o puro mal; mas não ousam criticar no nazismo justamente aquilo que eles também pensam : a busca da verdade, a busca do bem, a busca do homem ideal, a busca da sociedade ideal. E se metade do mundo já foi uma vez fascista, não é porque o homem não tinha consciência de sua existência, mas foi justamente porque ele a tinha demasiadamente, a ponto de ter movimentado o mundo da forma que fez. Criticaram "A Queda" por retratar um Hitler que era carinhoso com seu cachorro, como se ele tivesse que ser mau a todo momento. Talvez a crítica tenha sido feita justamente por não aguentarem reconhecer que, tal como todos nós, da velhinha da esquina à meninha com sorvete na praça, aquele homem amava os animais. E sabemos, não é mentira, que hoje em dia é quase senso comum que qualquer vaca num pasto distante é mais simpática e digna de amor que os nossos vizinhos de condomínio mal humorados, ou a pessoa que está ao nosso lado no trânsito.

A ignorância é uma dádiva. O português simples também. As palavras erradas e a pressa de viver. Os poetas são monstros covardes, porque são utopistas que só falam, e por não fazerem nada estão livres do erro. Os ativistas são piores ainda, porque fazem e acabam cometendo os erros que os poetas não cometem. Saramago é um chato, pois não admite a cegueira; Artaud era um bom homem, porque destruiu-se na violência de quem não quer fazer enxergar. O silêncio é belo, porque a morte está sempre nele. Aceitar a morte é a maneira mais sincera de aproveitar a vida. Ser uma boa pessoa não tem nada a ver com consciência, nem com Deus, nem com a verdade, nem com a busca de uma vida melhor ou de um mundo melhor. Quem busca uma vida melhor é porque não gosta da vida que tem. Ser um ignorante é ser uma boa pessoa. Aqueles que se acham bons e que sempre tem razão em tudo vivem constantemente em depressão, largados pelas suas mulheres e rastejando no chão com a tristeza de quem não quer ter tristeza, com o sonho de que as coisas sejam como eles queriam que elas fossem. Eu já fui assim... eu já passei por muitas das grandes merdas que me faziam pensar que eu estava certo em tudo, que minha vida era cheia de azar, que eu deveria chorar sempre que o mundo não fosse como eu queria que ele fosse. Mas não sou mais, porque sei que as pessoas que pedem para não comermos carne, para melhorarmos nosso condomínio, para lutarmos contra o capitalistmo, para lutarmos pelas causas mais obscuras são iguais às pessoas que proíbem a inocência suicida de quem acende um cigarro dentro de um bar, ou proíbem o uso de maconha em favor da vida e da família. Toda utopia é uma grande construção de prisões, e não há nenhuma que seja melhor do que outra.

Eu gosto do Marx que diz que a natureza do homem é a de ser um alienado; não gosto do Marx que diz que o socialismo é o estágio final da verdade do homem. Eu gosto da minha alienação, porque ela é inocente, porque ela não é utópica, e porque ela não move montanhas e destrói mundos pela busca de um bem ou de uma verdade maior. Eu gosto de tratar bem meus vizinhos conservadores de direita (sabendo mesmo que não sou como eles), e não vejo problema algum em chutar um cachorro que quer me morder - e admiro o cachorro por querer me morder, porque ele não tem utopias. Talvez aqueles que defendem os animais tenham razão em dizer que um animal é bom porque não é como o homem (se bem que, para eles, as baratas podem ser pisadas, porque não tem a expressão humana de um mamífero, ou simplesmente porque são sujas e comem minha comida); e eu concordo com isso, a ponto de querer ser eu mesmo um animal sem razão. Porque, como diria Caeiro, - e, pra mim, ele sabia das coisas, justamente por não saber - "a eterna inocência é não pensar".

E assim eu levo a cabo as palavras de Sócrates, mas sem pensar no contexto em que elas foram usadas... leio-as como coisas opacas, e tiro delas apenas o significado que nela está óbvio e simples: "só sei que nada sei".

1 Comments:

Blogger Laís said...

Pina. Você abordou várias questões que sempre me perguntei e quis saber mais, e ainda informou o que há por trás do "só sei que nada sei" - frase bonita, mas que sozinha soa um pouco batida, ou como música do Kid Abelha. xP Comentário: era uma das frases clichês que deveriam ser evitadas no vestibular, acredita?

Sobre as utopias, acho que sou uma sonhadora sem conserto. E ainda tenho os maus costumes de:
- Idealizar energicamente e não tolerar uma crítica;
- Querer que todo mundo siga a minha utopia;
- Criticar quem está na mesma. E entrar em depressão ao cair na real.

Aliás, penso que tudo isso tá bem ligado com várias coisas que você abordou, e sobre as quais preciso urgentemente refletir pois têm me angustiado. Começo a concordar com o "Toda utopia é uma construção de prisões", mas é algo que não consigo largar tão cedo!

E por ser uma tola que se acha melhor que os outros, sempre acreditei que a ignorância não é uma benção. Via aquelas pessoas que sempre critiquei se entupindo de vodka e pensava - "Ai, como sou superior com meu CD do Pink Floyd e meu livrinho do Kafka". Mas se isso for a verdade deles? Droga, esse conceito de "verdade" ainda me persegue, AHHHHHHHH!

A propósito, gostei muito daquela passagem "as pessoas que pedem para não comermos carne são iguais (...)". Nunca havia pensado dessa forma também. Sempre via essa questão dividida em dois pólos inconciliáveis, sabe?

Pina, desculpe pela falação. Espero não ter enchido o saco. Boa noite!

1:39 da manhã  

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