30.5.10

A morte santa

Eu corri pelo meio da multidão com os dois braços abertos e os punhos fechados vi um homem atrás de mim me perseguindo com uma máscara e nele dei três tiros, um nos pés e dois em cada mão. Caiu rastejando, a barba suja de lama, seus olhos amarelados, fedia a estrume e nele pus meus pés e disse "levanta-te, se o que tu dizes é verdade" e ele me disse, olhando fixo, tinha um corvo no fundo dos olhos "estou aqui para morrer, mais nada". Então coloquei os pés sobre seus dentes, soltei todo o peso do corpo, até que eles saíssem de lá, pequenas pedras de sangue, diamantes de magma e carne, ele os cuspiu e eu os masquei como chicletes: "veja, você não é feito de nada, te destruo com a ponta dos dedos". E ele sorria, já sem dentes, estranhamente eu via os dentes ali onde eu os tirei, eram feitos de algo que não era mármore, nem barro nem lama, nem carne e músculo e entranha - sopro de brisa, palavra vermelha e ferro em brasa. Então, ele me estendeu a mão e disse: "morra comigo, daqui para frente não há mais o que fazer". Então o beijei na boca, chamei-o de Cristo e até hoje ele me coça o céu da boca com sua língua, quando vejo que de mim nada restou senão um homem vazio, uma estante de livros e um amigo que amanhã vai partir, deixando na casa apenas os cascos usados de cerveja.

O rancor por dentro da noite

Queira guardar para ti seu rancor, que é teu único e inseparável amigo. Tuas costas são um faqueiro, tuas palavras um verso vazio: cagas na privada e conjugas verbos como se fosse importante, mas no fim, é tudo bosta com que os índios pintam a cara (URUCUM É A MERDA DO TINHOSO). O Mundo é círculo de fogo, barras de ferro, noite e sopro, e você no centro, que quer da vida?, não sei, que quer para amanhã?, o mesmo de hoje, que acha da tevê?, nela só me vejo quando apagada, quando partirás?, todo dia é a partida, minha, deles, destes homens que não sobraram. E então, quando todas as cidades forem uma só, me lançarei de uma ponte e habitarei esgotos: neles amamentarei os ratos e terei filhos fortes e sadios, e lá deixarei uma marca de minha existência, e para quê?, para que as bandeiras não fiquem a meio pau, e para quê?, para que a morte me dê dois dias a mais, e para quê?, para que meu pai não me veja morrer, e para quê?, para que o tempo das coisas não se inverta, e para quê?, amanhã todos me deixarão sem ver o sol, e nas sombras serei DEUS, que é este o destino dos homens: sombra-fazer-se, nos dias de luto, esses que habitamos. Amém.