24.9.10

Ensaio para um retrato do Eu

A lâmina perpassa
minha fina carne; o tempo
parou, mas meus nervos
se encolhem;
sinto a lâmina,
lá dentro,
bisbilhotando
meu Ser;

uma gota de sangue
pinga,
como se Deus
tivesse se crucificado
acima das nuvens,
provando ao mundo
que também é
Humano;

sinto o metal
encostando em minha carne,
a rompe
com uma delicada
fúria - ontem vi
meu corpo dilacerado em um sonho,
(onde mais? onde mais?)
a imagem de um santo
que morreu aos poucos
perspassado
por uma lança;

tenho cicatrizes
por toda a mão, nas pontas
dos dedos, nas juntas
até os ossos trincados,
(marcas
invisíveis);

estou sozinho em casa;
chove, depois de meses
de seca; um estranho
desejo passa
martela a cabeça
(faça a faca a faça)

a mão direita aberta
a palma estendida
sobre uma tábua,
enfio a faca a fundo, a ponta
penetra os ossos,

a forço
friamente

o sangue
escorre
por entre
os dedos
e
desenha
em sua queda
uma Estrela de Davi;
pinto a cozinha de vermelho
(é um quadro de Bacon)
arrasto
a lâmina pelos tendões de meu braço: abre-se ao meio,
no sentido da longitude (longe longe longe);
aos poucos
meu corpo se projeta
para dentro, a cabeça pesada
se funde ao tórax, meus
dentes cravados
no abdomén, os cabelos
vermelhos
como um pincel nascem

(um pensamento, como um flash:
que espécie
de prazer
se encontra
na morte?)

olho para a faca sobre a pia,
ela se insinua;

a lâmina chama minha mão novamente
- já não sei se hoje me cortei
por acaso, ou se no fundo
eu sempre a quis


por que não consigo estudar?
por que não me sai da cabeça?
preciso escrever, ou morro;
preciso escrever, ou me dilacero;

guardei a lâmina na gaveta


a pergunta de Goya paira no ar:
como se mata monstros
sem matar-se?