20.6.07

Meu pai, meu rei

Ver essa foto
de dez anos atrás me faz
sentir o gosto do passado: é como
enfiar a língua numa vagina
cheia de mousse de chocolate
com maracujá. Você olha
algumas fotos de natal
da família onde estão todos
comendo torta
de limão na casa do
teu padrinho e, com
aquele gosto enjoativo entre o doce
e o azedo por dentro do peito, você
pensa num instante: “caralho! que
saudade! parece que foi ontem.”

Depois tuas sinapses te levam às
boas lembranças dos heróis que
ficaram pra traz: Herzog, Che, Luther King,
John Lennon, Rocky Balboa, Conan (o bárbaro),
Jaspion, Jiraia, os Power Rangers com seus megazordes
e, por fim,
,lá no fundo da foto,
,te olhando bêbado com um sorriso bobo,
teu pai delegado e justiceiro:
aí você olha pra si mesmo no
presente e se pergunta “por que não
se fazem mais heróis como
antigamente?”.

É aí que aquele cheiro
de café torrado do passado infecta
tuas narinas e todos os
aromas doces se confundem com as
frutas podres do
teu futuro: você
não sabe se pára ou
se continua, se fica ou
se vai, se cresce ou
continua nessa vidinha de escrever poesia enquanto mama na têta do papai.

É pá-pum: te vem um
estalo, um instinto incontrolável:
“é, meu velho... é foda!”

E você
se toca que tem apenas
vinte anos de idade mas
já sente preguiça
de deixar filhos no mundo. Você
abdica da vida antes mesmo
de sentir o orgasmo que
vai fecundar a pançudinha que
tanto ama. Você percebe
que tudo virou do avesso quando seu pai olhou nos
teus olhos e disse: “filho, você
é meu herói”.

E isso vira uma angústia
incontrolável: papai vai ou não
chorar sobre teu
túmulo? qual é a ordem natural das
coisas? quem vai
poder chorar primeiro: o velho, com
seu coração entupido
bomba-relógio, ou você, capotando
na estrada a 150Km/h com
a ânsia de liberdade que
te corta no meio as entranhas adolescentes?

Sinto os pés descalços
no chão, olho pro calendário na parede
de casa e, sob a pressão
dos dias, concluo: “Quem
se importa? É inútil chorar sobre
túmulos: somos só os
fantasmas dos heróis que
não se fazem como
antigamente.”