7.3.09

a cicatriz do mundo

Um dia eu vou embora. Um dia eu coloco meus sapatos mais confortáveis, abro a porta de casa e vou embora sem pagar as contas. Eu vou embora, e não terei medo que cortem meu telefone, minha internet, meu celular. Eu não terei mais medo de deixar as coisas imóveis, intactas, nem ficarei irritado quando o lixo se encher de bigatos. Eu não terei medo de que algo ruim aconteça. Um dia eu vou. É assim com todas as coisas. É assim, com todas as coisas... E quando eu me for, as pessoas serão outras pessoas, e o velho feio e simpático que serve café na padaria vai te olhar de uma forma toda diferente. Todas as calçadas serão um santuário onde você não saberá em que desenho pisar. Quando eu me for, o mundo vai desabar, e com ele as coisas que você sempre fazia. A tua cozinha, o teu banheiro, o restaurante em que você sempre comia. Quando eu me for, as coisas terão outro cheiro, e os domingos terão um gosto diferente das macarronadas de domingo. Os livros da estante cairão como meteoros, e os dinossauros se desenterrarão da terra, como topeiras, e o sol os cegará com sua imensidão. Haverá no ar um certo lirismo de que não se pode escapar, e eu sei que, mesmo quando as correspondências chegarem para a mesma pessoa no mesmo endereço, o remetente não será o mesmo, e os números da tua conta serão em algarismos romanos. Quando eu colocar o pé pra fora da sua vida, seja com uma bala na cabeça, um escorregão na beira do lago, um suspiro doente de ancião, um terremoto, uma enchente, um furacão, um medo de viver, uma privada irritada que me sugará para as profundezas do esgoto... seja como for, quando eu me for, eu vou e tudo será diferente. Tudo será diferente, e assim eu espero. Eu estaria morto e acabado se eu ficasse aqui para sempre e soubesse que, se eu partisse, o mundo não teria partido no meio e engolido a realidade com a força dos meus passos. Um dia eu fujo... um dia serei uma memória do passado, e muito mais que isso. Serei os vulcões silenciosos dos teus olhos, serei o amor que você tem pelo seu gato, serei o gole quente de café, serei o seu livro em branco, a sua nuvem em dia se sol, o desespero calado dos que estão em casa assisttindo à tevê, as formigas que invadem o pão sobre a pia, o dia, a noite, a vida. Um dia, eu serei tudo isso, mesmo que você não saiba, mesmo que você me odeie, mesmo que você me esqueça de verdade... Um dia eu me vou e te deixo o que de melhor pude deixar. Eu prefiro ir para longe e rasgar com as unhas a tua carne do que ficar para sempre ao teu lado, sorrindo. Um dia eu serei a própria cicatriz do mundo - do teu mundo, aquele que escorrega por dentro dos teus olhos encharcados. Antes isso, antes isso, antes isso, com certeza, que passar pela tua vida e não tê-la transformado em fúria.