7.12.09

O exorcismo do passado

Sente os ossos por dentro, sente? A fria dor dos ossos, que de dentro pra fora chicoteiam-te os braços, queimam teus nervos e liberam a pestilência do teu passado. Não há nada mais rasteiro e peçonhento que o passado, a tua vida antes de ser você agora, o antes do hoje, aquele dia estranho em que te cravaram cinco balas no peito, uma faca nas costas, o pau no seu cu, o sonho pérfido de sonhar com o futuro. Queira você ou não eu estou aqui e aprendi muita coisa, e sei dessas coisas porque morri nelas; me chamam de impiedoso, ou talvez não me chamem de nada, mas é que (o que eu fiz aquele dia, pegando na mão dela e ela de repente pulou pra trás com o espanto como se eu fosse o demônio a puxá-la para o inferno e eu quase bati o carro porque era grosso e estúpido e não sabia lidar com aquelas coisas, e hoje vejo que foi melhor assim que ela me odiasse sem entender o amor que senti por ela, o amor passageiro que eu sabia que ia acabar e que ela transformou em ódio e eu a odiei por isso sem saber, e naquela noite em que bebemos caipirinha como se fôssemos pequenos deuses nos telhados lúgubres de Londrina, caminhando e rastejando pelo apartamento encarpetado onde certa vez eu a toquei com a língua e o seio - e por isso mesmo um dia fui chamado de hipócrita, e não sei bem porque, porque o mal não é amar, nem destruir-se no amor, mas muito mais dizer que não se importa - e foi bem naquela casa revestida de colchões que eu soube, por um momento, por um segundo, que as pessoas não cabem na palma de nossa mão - mesmo que seus seios estejam lá, mesmo que as toquemos por baixo, mesmo que nossa língua salive por elas) isso seria coisa de gente impiedosa, apenas querer e não ter tido resposta, deixar-se levar por certas coisas. O cigarro na janela, ela veio em casa, um trimilique no peito, me disse algo que eu sabia que não era verdade, mas eu acreditei assim mesmo, e ergo as mãos para o céu para agradecer o quanto fui ingênuo aquela noite, e sei que já não o sou, e por isso dizem que sou rancoroso só porque aprendi, com meu próprio passado, obecendo-lhe em tudo o que ele me disse, que é preciso esquecê-lo, que ele não é digno de permanecer em você (as barbas do meu bigode, o fio ruivo e gigantesco que escapa-lha, amanhã, talvez, senhores, a velhice me bata e eu sinta vontade de esquecer tudo isso que eu disse, e eu sei disso, porque no passado há muitas coisas e pessoas, há luzes e gente que corre pelas ruas gritando coisas estranhas, há loucos e pérfidos, há violência como nunca se viu, há aqueles que em suas mãos tem tudo e atiram para o alto e há aqueles que não tem nada e seguram esse nada com uma convicção idiota, impossível de se acreditar) eu estou mesmo é ficando velho, e sei que me tornarei um velho sem coração - e acho mesmo é que, numa dessas noites em que te fodem pelas costas, arrancaram meu coração e eu nem percebi, esconderam a cicatriz (lá dentro, bem dentro da carne, onde ninguém pudesse vê-la) e levaram-no embora para colocá-lo num pote de picles. E eu gosto disso, talvez ele tenha ficado gostoso lá, quem se importa? Sei que tiraram um peso do meu corpo, e se me transformei nessa pedra pesada e estranha que já não chora senão quando sabe demais o que é (e é por isso que eu não queria saber quem sou, pra que pudesse permanecer sempre assim, inocente, sem compreender meus erros, sem cair no poço infinito de quem pensa que sabe o que é), eu olho pra mim mesmo e sei quem não sou: eu não sou aquele que estava lá atrás e que foi deixado sem nem um poema poder ter escrito, sem poder dizer adeus, e que foi encontrado por uma estranha coincidência na hora errada, e que disse a Deus que queria que eu fosse padre "o senhor mesmo me tocou quando eu não sabia o que você queria, e agora que sei que você não existe, sinto uma imensa segurança em pensar em você e beijar teus pés e te adorar como o grande vazio da vida - obrigado, Deus, por ter morrido e ter matado assim o nosso passado, o passado desses homens que pecaram por amarem-te demais e que nunca irão se arrepender de nada, porque o conhecem bem o suficiente para não reconhecerem seus próprios erros", foi bem assim que eu deixei tudo para trás.

Mas uma coisa que ainda dorme aqui e que sempre que eu a vejo, lá longe, vestida com roupas estranhas e um sorriso inquieto, correndo pelo lago ou rindo bêbada ao som de uma voz gutural, é que tudo foi mal compreendido, é que todos entenderam errado, é que eles venceram porque eu não tive como ensinar-lhes: ó homens, filhos do vazio, loucos acorrentados que têm nessa corrente a maior das liberdades, vocês sabem mais do que eu a respeito da vida, sabem matar e pisar naqueles que te amaram, sabem sorrir impiedosamente de suas maldições, sabem reclamar da vida a todo instante, sabem não amar a si mesmos e nesse ódio mortal contra a vida destróem aqueles que estão ao seus lados e pensam que são o centro do universo - porque só no centro seríamos capazes de não nos perdermos - vocês que elogiam a loucura porque não sabem o que ela é, e que se soubessem não se entregariam às suas sombras, vocês que riem dos próprios defeitos, da própria crueldade, e depois correm aos palanques pedir desculpas, botar a culpa no álcool e nas drogas, botar a culpa nos outros, vocês que elogiam o descontrole apenas na medida em que é riso e palahaçada, mas que nunca se perderam, nunca puseram seus chinelos na mão e sua camiseta roxa cavada e andaram pela praia de Santos sem saber o que deviam fazer, vocês que nunca afogaram-se madrugada à dentro num turbilhão de sonhos frustrados fedendo a arroz feijão e ovo frito, vocês que não tiveram folhas atoladas no cu por um desconhecido enquanto seus amigos o chamavam de covarde pelas costas e suas pupilas dilaceravam-se e cresciam até o infinito, à beira do coma, no sono profundo de quem vê e não mexe as pernas!!!! AH, vocês não sabem o que é isso, perder-se completamente, pegar cacos de vidro espalhados na areia de santos, pensar que é louco por uma só vez, e não saber qual caminho tomar, chegar de manhã na escola com os livros na mão e só conseguir chorar, e sem saber por quê, e se sentir um grande idiota por não saber por quê, e correr como o diabo para dentro do quarto escuro, ouvindo músicas tenebrosas que te espremem o pescoço!, vocês que nunca atolaram seus olhos em ovo frito com gema mole e acordaram no outro dia achando que não teriam mais pescoço por baixo da cabeça, e que se sentiram sozinhos, extremamente sozinhos, infinitamente sozinhos, e que só precivam de um pedaço de papel para escrever, e você não sabia porque, vocês nunca passaram pela experiência da morte (isso vocês nunca aprenderam mesmo, porque fazem o elogio da vida pelo o que ela não é, juventude triste e solitária, que cultuam deuses em formato de cigarro e cheiram deuses brancos e finos que no pulmão transformam-se em coragem descontrolada e violenta, que te fazem sentir Deus porque vocês nunca puderam ser Deus sozinhos, sem esses Deuses dentro de vocês) - a vida pra vocês é isso? trepar, beber, foder, sorrirem como bobos porque destruíram leões e violentaram paredes? A verdade é que vocês não saberão nada da vida até que tenham morrido, morrido até o limite, matado-se, transposto o limiar da razão, afundado-se em no seu próprio interior, ter tocado o Vazio-primordial, o Nada e a potência da Vida lá onde ela é sombra e dores e sangue e estrume e sexo e Deuses demolidos... só lá, na morte, vocês saberão o que é mesmo a vida, essa que pede a todo momento que você morra e esqueça o futuro e o passado e o presente, e que implora para que o tempo seja uma ampulheta frita numa frigideira e temperada com requeijão e tomilho... só nesse lugar você saberá porque sou cruel e baixo e não perdôo o passado, mas por uma única razão: a vida está aqui, e não lá, e vocês me mataram sim, todos vocês, mas foi tão somente para me dar essa vida, essa única e bela vida, essa morte essencial, o último grande suspiro do meu diafragma que, lá de dentro, daquela cicatriz onde meu coração foi puxado para fora, agora pode criar uma morada; lá eu vivo sem passado, e deixo que vocês fujam para esse sonho frustrado que é a vida antes da morte.