5.10.09

Literatura e linguagem

Wittgenstein:

"Posso saber o que o outro pensa, e não o que eu penso"

"Se um leão pudesse falar, não poderíamos compreendê-lo"

"Uma nuvem inteira de filosofia se condensa numa gotinha de gramática"

"A indizível diversidade de todos os jogos de linguagem cotidianos não nos vêm à consciência porque as roupas de nossa linguagem tornam tudo igual"




1. A partir destas frases, pergunto: em que sentido a linguagem é realmente um meio de nos comunicarmos? E isso, para quem pensa a literatura, é crucial. Até que ponto poderíamos dizer que um texto literário tem mesmo a função de comunicar algo se a linguagem, por si só, parece não ter essa função?

2 Quantas vezes não nos pegamos tentando explicar uma idéia a uma determinada pessoa e falhamos. Isso acontece quando dizemos, como quem não quer nada, "calma, o que eu quero dizer está na ponta da minha língua..." ou então "agora me escapou o que eu queria dizer". Poderíamos aceitar que, na verdade, nos faltam palavras pra explicar aquilo que já sabemos (como naqueles poemas clichês sobre amor ou amizade, aqueles que dizem que "não tenho palavras para dizer o que eu sinto", como se o limite da linguagem perdesse uma estranha batalha contra os limites do que sentimos). Mas é aqui que a coisa complica: será, realmente, que nós sabemos o que queremos dizer e que, no fim das contas, a culpa é da escassez das palavras!? Será que o fato de não encontrarmos palavras para isso que sentimos não é, justamente, uma evidência de que não sabemos absolutamente nada do que estamos falando!? Como ficaria o estatuto da literatura enquanto "forma de expressão" se admitíssemos que não há como separar os limites do conhecer dos limites da linguagem, os limites entre o querer dizer e o dizer efetivamente?

3. O que um louco preso a um manicômio realmente comunica quando escreve uma carta e a esconde debaixo do travesseiro, para que nunca mais seja lida? O que uma garota de 15 anos comunica quando escreve uma carta de amor que, por vergonha, nunca chegará nas mãos da pessoa amada? (Kafka não precisou ser louco para pedir que queimassem seus escritos - e, ao mesmo tempo, não foi louco o suficiente para ter coragem de queimá-los ele mesmo).

4. Quando tenho medo de sair na rua, é porque não sei o que irá acontecer na rua, ou é porque sei que não posso saber o que irá acontecer na rua? Até que ponto "esclarecer" não é uma experiência das "trevas"? Posso ter medo de algo que não sei o que é, de algo que desconheço?

5. Chego ao balcão de um boteco, bato a mesa com força e grito ao atendente a seguinte palavra: "condoleridadinho". Ele me pergunta o que eu quis dizer. Respondo que quis dizer "me sirva a pior vodka da casa". Ele me pergunta "você é louco?" e eu penso "acabaram de me chamar de louco porque disse algo que não foi compreendido... foi o desnível entre o 'querer dizer' e o 'ter dito' que me fez parecer um completo idiota".

6. Seria a loucura um problema de expressão, de falta de comunicação? Pois, se for, somos todos loucos - sem excessão. (Se um leão aprendesse a falar, ele seria louco).

7. Machado de Assis escreveu "O Alienista" no século XIX. Hoje, no século XXI, existem centenas de artigos discorrendo sobre o que esse conto diz, sobre qual é o "sentido" do texto. A maioria destas interpretações discordam entre si. Pergunto: à luz do conjunto de interpretações da crítica atual, tenho mais ou menos dúvidas sobre o sentido desta novela do que se eu a lesse em 1890?

8. Quando digo "aquele crítico não leu meu texto literário corretamente", é porque faltou cérebro ou sobrou petulância? (E você pode perguntar "você se refere ao cérebro do autor, ou ao do crítico?"). Talvez a resposta a essas perguntas não esteja necessariamente na busca do que o texto quer dizer, mas em sua forma de não fazê-lo. Mas como?

9. Seria a minha linguagem menos estranha a mim do que é àquele que me lê? O que significa "dominar a linguagem" quando se trata de escrever?

10. Quando um discurso religioso qualquer fala a respeito de "fé", de "crer no impossível" ou que "a experiência religiosa é uma experiência mística, de mistérios", o "mistério" aí não é tido enquanto "certeza"? Em outras palavras: rezo por que sei, ou rezo por que não sei?

10.1. "A experiência mística é uma experiência fora da linguagem". Mas como, se a palavra "mística" designa justamente esta experiência?

11. Admitir o mistério é neutralizar toda a novidade do mundo.

12. Quanto mais a linguagem se expande, maior o vazio que ela deixa para trás. Conhecer não é, ao modo de Husserl, "acumular camadas", mas sim cavar um buraco.

13. Aceito que "o átomo é uma partícula indivizível" e, anos mais tarde, descubro a existência dos protons e elétrons. O ato de conhecer, neste caso, coloca em dúvida a própria possibilidade do conhecer. Ou melhor: transforma a certeza em uma infinidade de novas dúvidas.

14. De agora em diante, para compreender a química, devo compreender que o átomo não existe enquanto partícula indivisível. Tudo mudou. A descoberta demanda-me mais conhecimento. (O espírito absoluto de Hegel seria então a dúvida original?)

15. Quanto mais sei, mais duvido.

16. Quando dizem que o conhecimento nasce de uma pergunta, já estamos dizendo aí que, na verdade, conhecer é comunicar.

17. Do que o louco duvida quando escreve? Posso saber o que ele pensa pela linguagem? Por que os escritos de Artaud são menos compreensíveis que Machado de Assis em "O Alienista"?

18. "A literatura comunica o incomunicável" e "A loucura comunica o incomunicável" são duas frases lamentáveis. (São frases que admitem a semiótica, mas negam a possibilidade do signo). Por que a firmar que algo incomunicável pode comunicar algo? Por que não admitir justamente a não-comunicação da loucura?

19. Freud produziu o surrealismo, mas não pensou no surrealismo. Isso quer dizer que "Breton leu a psicanálise pelo seu vazio"?. Mas que vazio? Breton fala a partir daquilo que Freud não admitia. "A psicanálise tinha o surrealismo dentro de si, esperando por Breton". Breton seria então um oportunista do vazio. "E quem não é?". (Não consigo responder a essas perguntas).

20. Entre a filosofia e a ciência, há uma diferença: só à primeira não cabe aceitar as dúvidas. Os cientistas comem dúvidas como americanos obesos comem hamburgueres.

21. "O admirável da arte é que posso interpretá-la da forma como eu quiser, subjetivamente". E o que há de subjetivo nessa ausência de comunicação!? Por que você precisa da arte, se pode interpretá-la como bem entende? Não seria melhor pensar naquilo que você bem entende sem se defrontar com a obra de arte?

21.1 A arte não se justifica pelas interpretações, nem pelo que quer comunicar; a arte é sempre violência contra aquele que pensa. (Ajustar o querer-dizer do escritor com o querer-ler do leitor é fugir de qualquer tipo de estranhamento. E, ao mesmo tempo, a arte caminha cada vez mais ao seu desejo de estranhar-se).

22. "Thompson faz jornalismo subjetivo". E o que isso quer dizer? Que eu poderia ler a mente de Thompson através de suas palavras? E porque posso ler a dele, e não a do louco? Que privilégio existe em fazer jornalismo e literatura? A função de comunicar?

23. "Uma fotografia é mais arbitrária e objetiva que a palavra escrita, porque a imagem impõe o seu sentido, bloqueia a imaginação, enquanto a palavra é aberta para inúmeros sentidos subjetivos". A imagem, sob essa perspectiva, comunicaria a si mesma, enquanto a linguagem comunicaria sua ausência. Desafio-te: imagine uma cor que você nunca viu antes! Só posso formular tal questão porque as palavras arbitram que existem cores desconhecidas. Por outro lado, se você visse tal cor, poderia pensar "nossa, uma cor nunca antes vista! quantas cores que eu não conheço não devem existir nesse mundo!!!".

24. A linguagem funciona entre o vazio de seu significado e a certeza de seu significante. É por isso que o significante e o significado, em si mesmos, nada tem de importante para os problemas da linguagem.

25. "Não penso fora da linguagem" também quer dizer "não deconheço fora do conhecimento".

26. Se minha linguagem é estranha a mim mesmo e, simultaneamente, não penso fora da minha linguagem, resta-nos a questão: como é possível comunicarmo-nos, se não há nada que garanta que o que dizemos vá de encontro ao que queremos dizer?

27. A literatura é o conflito entre o possível e o impossível da linguagem: o desconhecido que conhecemos, e o conhecimento que desconhecemos.

28. A loucura é a consciência deste vazio essencial à linguagem. Daí, também, ela existir tanto em forma de silêncio quanto em forma de morte.

29. Tese de Freud: "O sonho tem uma lógica que não é a lógica de nossa linguagem, mas uma lógica própria". O trabalho do psicanalista seria o de traduzir aquela linguagem para a nossa, aquela lógica para a minha lógica. Mas em que sentido a minha linguagem me é lógica a todo momento? Não posso, às vezes, estranhar-me com o que eu mesmo digo?

30. Se nossa linguagem não nos fosse estranha, que sentido haveria em pensá-la filosoficamente? (Para que Peirce e Saussure?)

31. Transformar nossa linguagem em estranhamento é, também, um produto de nossa linguagem.

31. A força do pensamento anti-filosófico de Wittgenstein é justamente o de neutralizar a dúvida pela afirmação da impossibilidade do conhecer o sentido exato. Mas Caeiro já o tinha feito quando falou do "não-pensar", e da "eterna inocência". (Por que Caeiro é um frustrado, e Wittgenstein é o maior filósofo de nossos tempos, se ambos mataram a filosofia ao admitirem a insuficiência da linguagem?)

3.10.09

Sobre a loucura em seu sentido banal

Lembrei-me hoje de um poema que escrevi há uns dois anos atrás, logo depois que acordei com uma ressaca física e moral. Foi no auge de um tempo em que eu achava que ia pirar, que eu ia acordar no outro dia sem conseguir levantar da cama e ia esperar alguém do manicômio vir me buscar enquanto minha mãe chorava ao fundo abraçada no ombro do meu pai que olhava pra mim com aquele olhar de nojo e reprovação pensando em quanto dinheiro ele ia gastar pra manter o filho esquizofrênico pelo resto da vida preso no hospício como um peso inútil para a vida da família. Eu realmente achei que daquele dia não passava, que se houvesse um limite para a razão dos homens, eu estava exatamente ali, surfando sobre aquela linha tênue. Tudo aquilo porque, um dia antes, fiquei bêbado de cair no chão - e realmente caí, numa poça de lama de cerveja, no meio de umas 4 mil pessoas que batiam seus pés furiosos na terra e dançavam como se fossem elefantes numa arena de rodeio. E, pensando sobre todo esse papo de transgressão, drogas, hippies, Geração Beat, literatura e porraloquice, me dei conta de que, ao contrário de Kerouac e Ginsberg, eu nunca me orgulhei de ter passado por uma situação dessas.

Hoje, relendo aquele poema, vi que eu não queria tombar pro outro lado da lua, que eu nunca me orgulhei daquilo, que eu não achava que cruzar a linha da sanidade poderia fazer minha mente expandir, ou algo que o valha. Aquela vontade incontrolável que eu tive de escrever um longo poema de 3 páginas sobre a loucura foi um canto de horror, de medo, de estranhamento. O mais engraçado é que, enquanto meus amigos me olhavam com nojo naquela posição deplorável , pensando que aquilo tudo não passava de fingimento, de frescura, etc. e etc. (disseram-me, naquele dia, que eu fazia aquilo para chamar a atenção, e que por isso deveriam me deixar sozinho........ como se o louco, preso ao silêncio do manicômio, fosse um espetáculo maior que o palhaço que clama pela atenção do público do circo), um outro amigo nosso era venerado porque tinha se jogado bêbado de cima do palco e quase quebrado o braço num momento de êxtase de alegria. "Meu, cê é louco, cê é pirado!", as pessoas riam em volta dele. Não sei porquê, mas a idéia de transgressão, no senso comum, está muito mais ligada a essa "loucura" risonha, a esse lado cômico da "loucura", do que da experiência trágica de horror e desespero, do já-estar-aí da morte. Não há espaço para a dor em nossos tempos. É mais fácil acreditar na felicidade entorpecida do que nos desesperos incontroláveis. E é por isso que, a meu ver, as sombras que rodeiam a obra e a vida de William Burroughs não tem absolutamente nada a ver com a felicidade colorida dos hippies e da contracultura. E, em certo sentido, creio que eu possa dizer o mesmo de Thompson. Quem lê em Thompson um ícone da contracultura, um palhaço drogado fazendo arroaças divertidas, um irônico que transforma desgraça em riso (porque, afinal, é só o riso que importa), está lendo o lado mais "Mtv" de Thompson. O que me intriga em sua escrita é justamente o avesso disso, a experiência das trevas, da insanidade que o circunda e que o obriga a escrever mesmo que ele não queira, a escrita que é uma maldição.

Existem pessoas que ficam a vida toda em busca do poema perfeito, construindo sua literatura tijolo por tijolo, pensando em cada palavra e em cada som que está dentro do poema, tentando aperfeiçoá-lo cada vez mais para que ele posssa, enfim, transformar-se em um jogo semiótico que, sob a superície árida dos signos, esconde nada mais que os caprichos arquitetônicos de um Arnaldo Antunes. Esses acham que é o escritor quem deve perseguir a literatura, que o poeta é uma espécie de caçador que deve enjaular as palavras e colocá-las no zoológico para que as crianças batam palmas. Mas eu aprendi naquele dia justamente o contrário, que é a literatura que te persegue, não mais que de repente, nos momentos mais estranhos e bizarros da sua vida. Quando acordei com ressaca, não senti vontade de comer, nem de beber água... só senti uma vontade incontrolável de escrever aquele poema, aqueles "7 passos para se produzir uma loucura", que apareceram na tela do computador muito antes de eu pensar em como eles seriam. No momento de desespero, em que você realmente acha que é o último segundo da tua vida, não resta muito tempo para pensar. Hoje, vejo que aquele poema é uma parte do meu lado Burroughs, meu lado Thompson, meu lado trevas que transbordou naquela manhã de domingo. É quando a literatura te força a escrever em vez de você se forçar a fazer literatura. Uma espécie de maldição que acompanha aqueles que, em algum momento da vida, se vêem em cima do frágil muro que separa a loucura da razão e os palhaços dos homens sujos.



E agora, com a tranquilidade que só a monotonia pode proporcionar, eu posso dizer que o único orgulho que tive dessa experiência toda foi o de ter sentido o sincero desespero de quem nunca quis estar ali naquele momento.