29.1.08

noite veloz

Ela, bonita
de um jeito
que ninguém
explica:
corpo que
só se decifra
na agudeza
da língua
molhada;

sangue, dilúvio
epidérmico sob
os lábios de cereja;

um gole quente
de cerveja:
doce e amarga,
a madrugada
fria;

nas ruas escuras,
mia um gato;

o amor sempre
veloz: amanhã,
mais um dia de
trabalho.

casa assombrada

O pai o procurava por toda a casa, debaixo da cama, na despensa abandonada, no quintal de folhas secas, no topo do pé de jabuticaba: nada do Juninho! A suspeita era fuga... Minha culpa?, tua culpa?, pirraça?

Quatorze anos, sonho de alistar-se no exército. Dizia com os olhos inocentes “quando eu crescer, vou ser general!”. Em cima da estante, o arsenal de plástico: armas, tanques, bazucas, granadas, o filme de guerra favorito...

Nenhum bilhete sobre a cama. Perdeu-se ou seqüestraram? Cartazes com fotos pela cidade, e nem sinal do garoto. A polícia com tanta coisa mais importante pra se fazer: moleque levado, aos montes nesse mundo!

E que espanto foi quando, três anos depois, no dia do aniversário do garoto a mãe o encontrou dentro da televisão, com os braços batendo no vidro e o grito que implorava “me tira daqui!, mãe!, me tirem daqui”. A velha fita empoeirada, a famosa cena do dia D com os corpos boiando heroicamente na praia francesa - Oscar de melhor maquiagem, inclusive. Ah, sétima arte!, onde uma vida vale tanto quanto no mundo real. E o menino, que nem a barba começava a crescer, caiu no chão, com a bala que passou pelo capacete e... os miolos vermelhos, viscosos escorrendo sob a tela.

O pai nunca mais foi o mesmo. Fumava aqueles cigarros fedidos, o olhar perdido em alguma entranha do pensamento. A casa azul ficando desbotada, a parede forrada de musgo, janelas e cortinas fechadas. A mãe já nem falava como antes. Parou com os mexericos da vizinhança, largou o emprego, deixou de comer, o olhar fixo, o pensamento longe, passou a beber, largou a igreja: sexta-feira treze, o filho morto a machadadas?

- Eu vi!, era ele! era ele!, ali, na tevê, me chamando, eu sei, eu vi, o meu garoto me chamando!

No sanatório, aumentaram as doses dos remédios, terapia de choque... O doutor decretou que não tinha solução, caso perdido. Os cabelos brancos brilhando na cabeça de trinta e sete anos, os olhos acinzentados, rugas na cara. E todo dia a mesma história, o mesmo pesadelo estranho: tiro na testa, sangue escorrendo pela tela, assassinos desgraçados!

O pai já morreu há alguns anos, o coração há tanto tempo pronto para vazar pela boca. Costumava visitar a esposa sempre que possível. A vizinhança olhava pro velho com aquele pálido olhar de pena, cochichando boatos que previam para logo o velório.

Os brinquedos ainda estavam lá intactos no quarto: tanques de borracha, soldados de plástico, aviões em miniatura; era como se o Juninho ainda estivesse ali, na sombra empoeirada da janela, gritando “bang! booooom! morram nazis malditos... os aviões estão chegando!, os aviões estão chegando!!!”.

A casa vendida pelo tio, único herdeiro do enfartado. Os compradores, um promissor casal de jovens recém-formados; ele advogado, ela professora. A menina grávida com seis meses de namoro, agora o filho recém nascido. Vida nova, novo ano! E o velho tio avisou no dia da venda da casa: “e ainda tem o quarto mobiliado, já prontinho pro seu menino; podem ficar com os brinquedos e com os filmes; sabe, né? as crianças crescem, começam a pensar em mulheres, bebidas, perdem a inocência, e as tranqueiras ficam aí, como relíquias fantasmas...”

27.1.08

Tempo-livre

A cadeira voando pelo oitavo andar. "Miau", estridente como o anel de Saturno cortando os olhos. Dona Lúcia nunca teve filhos, mas tinha aqueles sete gatos, entre eles o Floquinho. A pele branca como a neve, agora tingida com o ferro vermelho do próprio sangue. Dizia-se que Floquinho não acreditava em chuva de canivetes.

- Você começa a beber e perde o controle!!! Se acalme!

Um pé fora, o outro dentro da realidade: a existência boiando à toa como o feijão ruim na bacia com água. Pense! Do que seria a humanidade sem a tragédia sem sentido de um gato branco morto a cadeirada?

- Floquinho!? Fala com a mamãe, querido!

Ciúme, uma faca de dois gumes, expressão mais pura da dialética de amar. Luta de classes, sistemas patriarcais com estruturas abaladas, ah!, o amor, pura e simples questão da economia sexual. Quanto mais se quer, menos te tem!, querida! Sob as garras afiadas da submissão, o amor persiste. Mulher de malandro, proletária do proletariado.

- Mulher minha não sai na rua com essa roupa de puta! Vá se trocar senão te mato de porrada!

A tia velha fritava polenta quando ouviu o barulhão. O peso de oito andares numa só tacada. Era uma boa cadeira aquela, vai fazer falta... fazia como ninguém seu trabalho de sustentar pelo rabo a miséria da humana arquitetura.

- Tomar no teu cu, vadia! Vai desfilar o rabo no quarteirão?

No outro dia de manhã, a mini-saia dobrada na gaveta a espera de um futuro qualquer. A velha solteira mandou comprar um caixão de bebê para o gato favorito. No quintal, uma cruz e um vaso de flores de pé. No velório, um só velando entre o ar engordurado e o cheiro de fubá. E descendo pelo elevador, como se nada tivesse acontecido, ele e ela de mãos dadas, caminhando por dentro da nuvem de silêncio costumeira que pressagia todos os miseráveis dias de labuta.

18.1.08

Hoje é só mais um dia qualquer.

Qualquer dia além de hoje vai ser
especial. Não porque será diferente,
mas porque, de repente,
amanheceu.

7.1.08

Todo o conhecimento do mundo

Além do que se vê,
não existe nada:
estrelas não haveriam
se não houvesse a
madrugada.

E se eu ficasse cego
hoje, aí tudo o que há nesse instante
já não haveria mais. Todo o mundo
então seria outro, e escrever
poemas tornar-se-ia
,enfim, realmente importante.

Sem olhos, o fonema
transcenderia a mera função
estética: seria antes, na ponta
da língua, o eco de toda
uma vida se refazendo: do mundo
vermelho de sangue e terra a um rio
de saliva translúcido; as pessoas seriam
sopro de brisa, e a
palavra, uma maciça
substância; ao dizer “Elisa”, mais
que escolher uma rima, eu
estaria literalmente amando!

Mas nesse instante presente,
eu vejo letrinhas sobre
esta folha de papel e volto
de meus pensamentos tendo
a consciência de que
fui hipócrita; sei que tudo o que
escrevi não passa de
mais um poema inútil discutindo
coisas que não fazem diferença para
mim agora. Enxergo o poema em
sua forma de letra de fôrma, assim como
enxergo o céu, as árvores e as
estrelas, e sei, dentro de mim,
que o mundo
tem texturas.e cores e formas.

O sentimento
de hipocrisia
me absorve de tal maneira que até
mesmo me dou conta que minha suposição
descrita nos versos acima são apenas devaneios
de um poeta que tem dois
olhos saudáveis e que, mesmo
fechando os olhos, ainda assim sempre
pensará como quem os têm disponíveis
sob as pálpebras. Seria impossível
afirmar se é verdade o que digo, ainda
que eu acredite nisso... ou não!, ou talvez
o impossível seja mesmo afirmar que é pura
mentira, justamente porque acredito nisso.

Desisto então de pensar mais, e fico
absorvido pelo exercício bobo de olhar
pro céu!

Ah!, céu azul!, pequeno rastro
de luz abundante, você
me ensina a viver com
alegria o cotidiano: antes olhar
pra tua imensidão entediante
que se angustiar
com vastas cosmologias
inúteis. Céu azul irradiando
simpatia besta, graças a você
não me sinto triste por não
estar lendo um livro a mais
agora, tudo porque você me ensinou
a simples lição de que
todo o conhecimento
do mundo está
todo no mundo
que conhecemos.

4.1.08

Nunca estivemos
certos e nunca
estivemos errados.

A noite cai e não há
nada no mundo
que me faça pensar
o quanto ela é clara
pra mim.

Se você acredita em holofotes,
eu não me importo. Quero
antes sorrir como quem
se deixa enganar
pela maior mentira de nossos
dias pós-marxistas:
a verdade!

Objetividade eu masco
como chiclete
e a moldo entre
meus dentes sujos
e minha língua afiada. Tudo que
é dizível é maleável. No que cremos,
perecemos.

Todos os homens do mundo
são pequenos e
inúteis otários que ruminam
o discurso que lhes massageia
a virilha escondida dentro
duma caixa redonda
de cálcio.