17.2.09

Tenho vinte e um anos
e sei que as
coisas caminham com
suas próprias
pernas, como
as baratas. Sei que a vida
continua, embora pareça
estar parada. Um tédio
estranho é como
um prato de macarronada gelado: nada
mais grudento e vermelho
pode existir.

Vingar-me do passado. Enterrar-me
sob a areia da
caatinga, correr pelos
rios secos do sertão
e olhar-se no espelho
com orgulho das cicatrizes
que te dão um
novo nome: as escamas
me escapam.

Eu quero embebedar-me
toda noite e esquecer
quem sou toda manhã,
deliciar-me
com o cheiro estranho das
coisas sob o
perfume da
ressaca.

14.2.09

Dois minutos

Ela tinha um sorriso pequeno, comparado ao resto da cara. Os cabelos ruivos chamavam a atenção pela estranha antítese que um chumacinho vermelho provocava aos olhos se comparado ao tamanho da pança gaulesa. Seus olhos choravam manteiga, e seu coração bombeava óleo de soja. Mais uma barra de chocolate, coitadinha... no banco de trás do ônibus, solitária... há dois anos que ninguém senta ao lado dela. Podia até ficar com o outro gordo que volta com a gente do hospital psiquiátrico, aquele que senta lá na frente e parece pensar tanto que, se não fosse tão feio, seria até um garoto misterioso.

Lembro-me que sempre pensava: "Perto deles, eu sou até saudável! O que é uma anorexia perto disso? Essa solidão obesa chega a me constranger". O pessoal que se juntava ali na frente chegou a fazer um bolão de fim de ano, apostando qual era a idade dela e se ela era virgem ou não. Foi por causa de minha aposta de 30 reais que eu acabei sentando ao lado dela no ônibus.

- Você, se chama como?

- Luzia.

- Bonito nome.

- Alguma coisa tinha que ser bonita em mim, não é?

(De doente mental eu entendia: essa era depressiva... maníaca depressiva. Se fazendo de coitada assim, só podia!)

- Não fale assim, querida... você me parece bem bonita.

- Nao precisa mentir... eu sei a verdade. Meu sonho era ser assim, magrinha como você. Quanto pesa? Uns 38?

- Quem me dera! Estou um balão: 39 e duzentas!

- Anorexia?

- Eles dizem... mas é porque os médicos querem me deixar gorda e feia. Eu só venho no hospital porque minha mãe disse que, se eu não fosse, não me daria mais dinheiro para maquiagem.

- Hmmm....... Então, você realmente não se acha anoréxica?

- Claro que não!!! E aposto que você não deve se achar maníaco depressiva...

- Eu não sou maníaco depressiva! Eu sou gorda. E feia. Ser maníaco depressiva é o menor dos meus problemas...

Naquela hora, eu senti que ela confiava em mim. Provavelmente, porque eu era magra, e ela queria ser como eu. A recíproca não era verdadeira, absolutamente! Eu não queria ser depressiva... muito menos gorda, Deus me livre! Sentia nojo só de olhar praquelas bochechas, sempre oleosas e vermelhas como se o suor dela fosse puro sebo e a maquiagem que ela usasse fosse comprada em camelô. Mas eu agüentei firme ali, e continuei me fazendo de amiga da menina. O que eu precisava mesmo era descobrir a idade dela e se ainda era virgem....

- Problema? Eu não vejo problema algum. Você é tão bonita, e tão jovem... quantos anos você tem?

- Vinte e sete.

(Droga! O bipolar do Augusto ganhou o bolão da idade!)

- Então, tão jovem e bonita, aposto que está cheio de homens atrás de você.

- Homens? Não, não... nenhum homem. O que eles iam querer comigo?

- O que todos os homens querem com mulheres, menina inocente: transar!

- Ai... Eu não gosto de falar disso...

- Por que? Você é virgem, é?

Foi aí que ela começou a chorar e virou a cara para mim, pedindo para que eu fosse embora. Naquele momento, percebi que a resposta estava clara: claro que aquele monte de banha era virgem! O que significava que só o Augusto bipolar tinha perdido, e que todos nós que apostamos na resposta mais óbvia iríamos ganhar muito pouco dinheiro.

Quando voltei a meu banco, todos esperavam pela resposta. Quando contei o que aconteceu, todos começaram a rir e caçoar. Olhei no fundo do ônibus e vi Luzia comendo uma barra de chocolate enorme. Não sei como alguém consegue comer tanto chocolate! A quantidade de calorias que existe ali seria capaz para alimentar uma família por um mês inteiro! Mas, pelo menos, o chocolate fez ela parar de chorar um pouco, contribuindo para diminuir a poluição sonora do lugar.

No mês seguinte, Luzia não estava no ônibus. E assim também o foi por quatro meses. Sei lá o porquê, mas comecei a sentir um remorso horrível dentro de mim. Não parava de pensar que aquela feiosa poderia ter se matado por minha causa. E se ela tivesse se suicidado com uma injeção de manteiga direto na veia? Eu não suportaria pensar que eu seria a responsável por uma cena tão grotesca!

Perguntei ao motorista o que tinha acontecido com aquela menina, e ele simplesmente disse que ela havia piorado seu estado de depressão, e que sua família achou melhor se mudar para outra cidade, que isso talvez a ajudaria a curar-se. Entre os outros passageiros, havia o boato de que o médico dela havia dobrado a dose de remédios. Aquilo tudo martelou tanto na minha cabeça que, se eu não fosse conversar com aquela menina, acho que acabaria comendo uma barra inteira de chocolate para parar de chorar.

Quando entrei na sala do médico naquele dia, contei toda essa história e tudo o que eu estava sentindo. No fundo, eu sabia que ele queria mesmo era que eu deixasse isso pra lá e me dedicasse a deglutir as adocicadas e amanteigadas calorias da redenção. Mas ele não o fez. Apenas olhou bem pra mim e disse: "eu era o médico que tratava da Luzia". Me apavorei tanto que, mesmo com medo de minha saliva me engordar, engoli-a bruscamente. E ele continuou, olhando-me firme como se fosse meu pai: "por que você não a procura e conversa sobre isso? É o melhor a se fazer, tanto para ela quanto para você". E, em vez de uma receita médica de binadissodicrin 23mg, o doutor anotou com letras grandes o novo endereço da menina.

No outro dia mesmo, coloquei meu vestido mais bonito, passei uma maquiagem leve e viajei por seis horas e meia para bater na porta dela. Luzia apareceu usando uma calça de ginástica tão apertada que seria possível a uma cigana ler seu futuro naquelas celulites. A surpresa que eu via nos olhos dela me dizia que a qualquer segundo a porta poderia bater no meu nariz, e eu teria que gastar fortunas com uma cirurgia plástica dolorosa. Mas ficamos paradas em silêncio, olhando uma para a outra.

“Juntas, lado a lado, a soma de nosso peso dividido por dois é igual à média de quilos de uma brasileira comum”. Isso pulou na minha cabeça sem explicação alguma, mas me dizia que, se ela era um monstro anormal, eu deveria ser o seu inverso; e que, mesmo assim, juntas ali, uma de frente para a outra, éramos apenas duas pessoas normais.

- O que veio fazer aqui?

- Eu senti sua falta no ônibus...

-Você viajou 380Km só porque, de repente, sentiu falta de uma pessoa que desprezou por dois anos e conversou por apenas 5 minutos?

(Eu senti vergonha.)

- Olha... na verdade eu estou aqui porque tenho me sentido culpada. Dizem que você piorou nos últimos meses, e não consigo parar de pensar que foi por minha causa...

- Sua causa? Queria que você e fosse realmente o meu maior problema.

(uma lágrima, eu vi.)

- Mas então... qual é o seu problema?

- Meu problema? Por que você se importaria com o meu problema?

(eu não sabia por que, mas estranhamente eu me importava)

- Eu não sei... eu apenas me importo! Por que você não me fala o seu maldito problema pra que eu possa saber, de uma vez por todas, que eu não sou a causa disso tudo, que eu não toquei na sua ferida e que eu posso dormir tranqüila sem pensar que, no dia que você se matar, eu passarei pelos seus pensamentos inundados de lágrimas como aquela que quis rir da tua miséria?

Ela olhou para o chão, despencando a chorar, e, quase sem forças, disse apenas:

- William...

- William?

- É... o garoto, o gordinho sem vida social que se senta na frente de ônibus.

- Ah! Aquele... aquele William. Você gosta dele?

- Eu amo ele! Nós ficamos juntos há mais de um ano e meio, quase todas as noites. Ele pega o carro do pai dele, me leva para um lugar distante da cidade e lá nós ficamos juntos enquanto ele fuma maconha, transa comigo até gozar na minha cara e me leva embora, como se nada tivesse acontecido.

- Você... e ele? Aquele menino feio, gordo, cheio de espinhas na cara, que mais parece o filho do queijeiro?

- Sim... esse mesmo.

- Mas se você transa com ele, se está com ele há tanto tempo, qual o problema?

- O problema? Como assim, qual o problema? Eu transava com ele todas as noites porque ele é o único que me queria... e mesmo sendo o único que me queria, ele nunca teve a coragem de aparecer de mãos dadas comigo, de me namorar de verdade, como as garotas bonitas fazem, tudo por causa da vergonha de ficar com uma mulher gorda!!! Tudo porque eu sou gorda, e feia e imprestável... e quanto mais ele me ignora, mais eu como chocolates, e quanto mais como chocolates, mais eu engordo e mais ele me ignora!!! E isso é um inferno...

- Quer dizer que........ você não é virgem!?

- Não! Ser virgem seria um problema muito pequeno perto dos problemas eu realmente tenho...

- Quer dizer que eu não sou culpada da sua depressão ter piorado?

- Não... você é um problema pequeno perto.......

- ... pois eu sou virgem...

- Você?

- é... eu.........

E foi então que desbanquei a chorar, mais do que ela, e tudo ficou horrível, uma sombra negra desceu à terra e não era apenas a sombra borrada da minha maquiagem. Eu não sabia se o pior de tudo era me sentir frágil, ou feia, ou perceber de repente que mesmo aquela gorda laranja e sardenta, com todo aquele tamanho, ainda assim tinha alguém que transava com ela! E quando tudo o que eu sentia era um ódio, uma raiva, uma ira que me fazia querer pular do último andar do maior prédio do mundo pra ver se alguém finalmente olhava pra mim... foi aí que, de repente, eu percebi que Luzia me abraçou com os braços cheios de dobras, olhou para mim com o olhar amigo e estendeu em minha direção uma enorme barra de chocolates que provavelmente ela guardava no bolso.

Eu não pensei em mais nada. Enfiei tudo aquilo direto na boca, e mastiguei por 2 minutos sem pronunciar uma palavra. Dos meus 27 anos, foi a melhor sensação da minha vida.

A fúria da vida

Deitar na chuva e se
molhar de barro, cheirar a terra
e escorregar, lavar com grama
a ferida e sujar
com sangue
o solo; ter pernas
como se tem raízes,
mas arrancá-las
com a violência
de todos
os homens de bem.

Meu cabelo molhado
é uma dádiva. Entre
meus olhos, ele
se insinua feliz.

Aqui, não sei
se são chuva
ou se são lágrimas
estas coisas que
escorrem no
meu rosto.

A água dissolve
todas as palavras
enquanto os trovões queimam o mundo
e minha mãe
se irrita por
eu não querer
me secar e
troucar de roupa. Mas um
banho quente me
destruiria nesse
instante!, me
tornaria outra coisa
que não
a chuva... ela
nunca entenderia; é
isso que as mães
fazem: elas não
entendem a chuva.

Se eu morrese sob
um raio, nunca
poderia pensar sobre
morrer sob
raios; se eu ficasse
gripado, toda minha fúria
se resumiria
à violência
de um espirro.

Mas eu não morro.

Eu escorro, como
a chuva, e faço
um poema pacífico
sobre a fúria
silenciosa
da vida.