25.9.10

Traços da América

a América,
quadrada no rosto de suas
mulheres, no queixo
de ferro de
Neal Cassady, em seus
olhos saltados
da face, na firme
solidez de
suas casas, na pobre
arquitetura de suas fortalezas,
na imensidão de um céu
onde o horizonte
desmente que a Terra
é uma laranja, nas
torres de concreto
que empalam
a madrugada,
nas luzes que contornam as janelas
e delas escapam,
a América-quadrada e
inacessível
onde meus sonhos
se despertam
para a
realidade
de
Deus;


Deus é o círculo
que a América não
pode tocar

24.9.10

Ensaio para um retrato do Eu

A lâmina perpassa
minha fina carne; o tempo
parou, mas meus nervos
se encolhem;
sinto a lâmina,
lá dentro,
bisbilhotando
meu Ser;

uma gota de sangue
pinga,
como se Deus
tivesse se crucificado
acima das nuvens,
provando ao mundo
que também é
Humano;

sinto o metal
encostando em minha carne,
a rompe
com uma delicada
fúria - ontem vi
meu corpo dilacerado em um sonho,
(onde mais? onde mais?)
a imagem de um santo
que morreu aos poucos
perspassado
por uma lança;

tenho cicatrizes
por toda a mão, nas pontas
dos dedos, nas juntas
até os ossos trincados,
(marcas
invisíveis);

estou sozinho em casa;
chove, depois de meses
de seca; um estranho
desejo passa
martela a cabeça
(faça a faca a faça)

a mão direita aberta
a palma estendida
sobre uma tábua,
enfio a faca a fundo, a ponta
penetra os ossos,

a forço
friamente

o sangue
escorre
por entre
os dedos
e
desenha
em sua queda
uma Estrela de Davi;
pinto a cozinha de vermelho
(é um quadro de Bacon)
arrasto
a lâmina pelos tendões de meu braço: abre-se ao meio,
no sentido da longitude (longe longe longe);
aos poucos
meu corpo se projeta
para dentro, a cabeça pesada
se funde ao tórax, meus
dentes cravados
no abdomén, os cabelos
vermelhos
como um pincel nascem

(um pensamento, como um flash:
que espécie
de prazer
se encontra
na morte?)

olho para a faca sobre a pia,
ela se insinua;

a lâmina chama minha mão novamente
- já não sei se hoje me cortei
por acaso, ou se no fundo
eu sempre a quis


por que não consigo estudar?
por que não me sai da cabeça?
preciso escrever, ou morro;
preciso escrever, ou me dilacero;

guardei a lâmina na gaveta


a pergunta de Goya paira no ar:
como se mata monstros
sem matar-se?

12.9.10

o cemitério dos vivos

Olhar para a foto de um morto,
sentir em sua
imobilidade
o terror e o
vazio da VIDA

(Neal olha para o lado, parece
não saber que ia morrer à
beira de um trilho, consumido
pelas drogas
com o vento batendo
em seus cabelos - movendo,
lentamente, na ponta
da cabeça, o único
resto de homem
que se expressa
no sopro tímido
da natureza)

OLHOS arregalados
magro, a magreza
que lhe contorna
o crânio e o pescoço sustentando
por um pilar de arames
e nervos: uma bola de cálcio
o cérebro
onde o passado se aninhou
galhos sobre galhos
o ovo da arte
a gema, a Palavra
- DEUS se esconde ali,
é uma bolha
de luz!

(Kerouac o abraça,
eles riem juntos - será
que sabiam que
a escrita os torturaria até
o ultimo segundo? e a traição
o desespero - aquela
máquina de escrever, que ele espera
trancafiado para
exorcizar-se, antes que a morte
chegue [a passos largos
a morte vem, correndo,
com pressa,
galopa em teu frágil corpo de homem
se chama fogo?
alma? PALAVRA!?]
E então você se pergunta, tudo o que vivi
VALEU À PENA!?)

Lima me encara. Seus olhos negros
me dizem "LOUCURA",
sussurram "venha...
te espero aqui, vem
comigo, me dê a mão,
ELA é contagiosa",
já não sabe quem é, ele mesmo,
espera pela morte - quando
bebo, quem está em
mim? quando escrevo, que espécie
de monstro se apodera?

os coloco na estante, descansem
em paz, me deixem dormir,
SAIM DE MINHA CABEÇA

essas fotos, vazias,
sem cor,
esses livros empoeirados
(estou ficando velho)
palavras que correm de lá para cá enquanto
durmo, debaixo de minhas cobertas
(algumas tem asas, outros chifres,
dentes horríveis, me engolem, mastigam-me
em seus sonhos A BOCA ABERTA
DE TERROR) a morte me espera,
dorme comigo

TENHO QUE ESCREVER!!!!

Bakhtin, seu cigarro aceso
o rosto decrépito
me encara e pergunta
"não vais fazer a grande obra?"
"sabias que comer merda é despertar para a vida?"
os dejetos de sua boca

ele está morto
não pode me forçar
a nada
(mas permanece, a fria caricatura, a fumaça sai da ponta
de seus dedos,
parece um morto-vivo)
- VIVO?
- ONDE?



Na estante,
o Cemitério dos Vivos,
a estante:
o CEMITÉRIO DOS VIVOS