27.4.08

a fragilidade das coisas

O acaso é a única
regra; se o sol está ali
quando o mundo renasce
em teus olhos
de remela, tudo
isso é mero
acaso; se ela sorri
e chama teu nome
quando entre-pernas
a penetra, é só acaso
que nem Deus
nem ninguém na Terra
explica.

A fragilidade
das coisas nos cerca; a
jura de amor, o
beijo matinal, um gole de
café, todo um mundo
de fragilidades se anuncia
enquanto o sangue corre
quente em tuas
veias.

Tão frágil
quanto uma reza de
joelhos, um elefante
solto pelas ruas, a ira
de sua mãe
quando se esquece do
agasalho; tão frágil quanto
o desenho que
as estrelas fazem no
céu, o sorriso
enrugado de
teu avô que
resiste num
asilo; frágil
como o
perfume
de teus
pés
sobre
uma pilha
de rosas:

o peso do mundo
preso a um fio de cabelo
de nossas
cabeças.

26.4.08

Perdido nas páginas de um boletim de ocorrência

Três carreiras e sete doses. Ela veio em casa daquele jeito e começou a gritar, como era de costume, e a criança acordou no berço chorando. Ali era o inferno, eu via que ela coçava o nariz e não parava quieta, não conseguia dormir, e confesso que eu já desconfiava que ia dar merda, por isso eu queria que ela dormisse logo, antes que a vizinhança a encontrasse naquele estado. Pedi pra ela dormir, mas não adiantou nada, o tiro saiu pela culatra e ela começou a gritar mais e mais e mais e reclamar do nosso casamento pra que todos ouvissem, e depois começou a bater as panelas e gritar que era pra eu ir embora de casa e largá-la sozinha na vida, que eu era o demônio e que ela só queria aproveitar a vida de merda que ela tinha, aproveitar enquanto ela era jovem e era bonita e podia fazer coisas novas. Eu tinha dó, eu sabia que ela estava mesmo era querendo botar a culpa em Deus e no mundo porque a gente casou por causa do bebê, sabe?, nunca quisemos de verdade, até porque ela nem tinha terminado a faculdade quando ficou grávida. Ela daria uma boa arquiteta, eu sei, mas não foi minha culpa, o que eu poderia fazer?, foi o acaso do destino ela embuxar com dezenove anos, e se a camisinha estourou ela também tem responsabilidade, não fiz isso sozinho, não é verdade?, naquele dia ela me achava o máximo, agora eu sou toda a merda da vida dela?, se ela é infeliz não precisa botar toda a culpa do mundo nas minhas costas... e pelo menos respeite o menino que dorme no berço com aquele rostinho inocente, afinal, é meu filho, é o filho dela, porra!, custa muito querer amar alguém uma vez na vida!?, custa não amaldiçoar a própria vida pelo menos uma noite!?, sentar na mesa sem reclamar do trabalho, do que a vida poderia ter sido!?, custa dizer "eu te amo"!?, e sempre que ela fazia aquilo eu pensava "até quando isso vai durar?", porque ela sempre, sempre!, sempre! ela chega de madrugada caindo no chão de tão drogada depois de gastar o pouco dinheiro que conseguimos para cuidar do bebê com aquela maldita farinha colombiana... seu delegado, eu não aguentava mais!, não aguentava!, ela vinha todo dia, todo dia a mesma coisa, e meu filho sofrendo, ela mesmo dizia que sofria, toda vez, que achava aquela vida uma merda, que ela ia fugir com um cara rico, que ia viajar de moto por aí, sei lá, qualquer coisa que a fizesse esquecer que o mundo não é fácil, que a vida bate na nossa porta sorrindo ironicamente e pede pra que a gente resista, pra que a gente aguente firme e não perca a cabeça... a verdade é que ela ainda era uma criança, tudo ficava nas minhas costas, eu que trabalhava, eu que comprava e trocava as fraldas, eu que limpava a cozinha, e ela só gastava o pouco dinheiro que tínhamos pra se entupir daquela merda! Eu te digo, seu delegado, não dava mais pra aguentar, meu filho não merecia isso, não merecia essa mãe, ele merecia um mundo bonito, ele queria brincar com crianças num parquinho e voltar pra casa e abraçar a mãe, contar pra ela sobre o seu dia sem que ela dissesse "vai pro quarto, moleque, cê tá me atrapalhando!", ele precisava de coisas normais, esse tipo de coisa normal, sabe?, ele merecia uma vida comum, o senhor não acha?, mas ela não achava isso, ela achava que ele era um estorvo, o coitadinho, e no fundo eu sempre soube que ela não me amava nem amava o menino, eu sempre soube que um dia ia acabar dando em merda, eu sempre desconfiei que ela não ia segurar as pontas............. mas assim?, desse jeito?, pular da janela do nono andar com a criança nos braços, na minha frente, sem que eu pudesse fazer nada?................................. eu choro todo dia, todo dia me lembro dos olhos dela, estalados como se não estivessem vendo nada além da própria morte.................................... meu filho não merecia, seu delegado.....................

20.4.08

Poemas que nasceram e não merecem respeito

I
Um anjo na minha bicicleta
me disse ontem que era pra
eu esquecer
essas coisas estúpidas sobre o amor.

Eu concordei com ele.

Concordei e fiquei quieto e sereno e pacífico.

Até que caí
no chão e meu dente caiu
sobre
o asfalto
como uma gota de chuva.

Aí tudo mudou, e eu só queria amar
de um jeito idiota
enquanto minha boca
sangrava estupidamente
numa
noite
de abril.


II
Eu queria não sentir
nada. Queria lamber
pimentas e espremer
limão nos olhos como quem não
tem nada pra dizer mas
ainda assim quer
fazê-lo.

Eu queria não sentir nada,
nem frio, nem calor, nem o beijo
daquela menina que
um dia foi bonita
mas agora
sente
muita coisa que não
entende - e ainda é feia, coitada.


III
A cidade invisível está bem
ali. Eu sei, porque a vejo
com os olhos.

Nela habitam
um milhão de mágoas que dirigem
loucamente no transito caótico
dos sentimentos
calados.

E eu ando
de bicicleta.

IV
Gordinha, gordinha, gordinha... se eu
tivesse um milhão de rosas
dar-tas-ia sem pestanejar.

Mas eu não tenho.

19.4.08

Mundo oculto e mundo esclarecido: porque o jornalismo é uma ciência

Em seu livro sobre teorias do jornalismo, Felipe Pena defende que a natureza deste ofício está na busca pelo desconhecido. Encontrar coisas novas e reportá-las, segundo o autor, é uma maneira de se sentir mais seguro perante o abismo de trevas que nos rodeia. Foi para combater estas trevas que instrumentos como as caravelas, as lunetas e os microscópios foram inventados. Conhecer o mundo seria uma espécie de instinto que possuímos para equilibrar o medo de um mundo oculto.

É preciso levantar uma questão para depois esclarecê-la: será mesmo que temos tanto medo assim do desconhecido?; será mesmo que abrimos o jornal todo dia de manhã porque queremos nos proteger de um mundo que não conhecíamos até ontem?; será mesmo que o jornalismo nos traz mais esclarecimentos que dúvidas?

Já que Felipe Pena trata do tema da "natureza do jornalismo", então vamos buscar nossa resposta na antropologia, ciência que possui certa familiaridade com esta noção de "homem natural". Ao ler um autor como Claude Lévi-Satrauss, entenderemos que todas as sociedades até então conhecidas possuem desejo pelo conhecimento. O antropólogo francês cita, em seu livro O Pensamento Selvagem, uma série de dados sobre a ciência dos homens que chamamos, ingenuamente, de primitivos: alguns esquimós, por exemplo, conseguem distinguir mais de 20 tipos de tonalidades diferentes das radiações que a nossa sociedade chama de "branco"; há tribos da américa que possuem vocabulários suficientes para dar conta de mais de 800 espécies de seres vivos entre animais e vegetais. A hipótese de que esse conhecimento tenha-se criado a partir de necessidades alimentícias ou econômicas é refutada logo de início por Lévi-Strauss: ora, seria humanemente impossível afirmar que uma tribo qualquer diferencia 20 tipos de branco ou 800 tipos de seres vivos porque precisa disso tudo para sobreviver.

Parece que, tanto quanto nós, os "selvagens" constróem sua ciência sobre um mesmo pilar: a simples curiosidade. Ora, é um absurdo dizer que a curiosidade deve ser entendida como a vontade de esclarecer o desconhecido justamente porque temos medo dele. Se o fosse, o homem contentaria-se em conhecer aquilo que precisa e não aquilo que está além de suas necessidades; se o fosse, saberíamos, praticamente, apenas o nome dos alimentos que consumimos. O homem curioso não descobre a realidade oculta porque tem medo dela; muito pelo contrário, ele cria e recria o mundo oculto porque deseja possuí-lo. É de uma incoerência infantil dizer que o homem busca aquilo que tem medo, como se uma aracnofóbica tivesse tendências a estudar aranhas.

Desde que as ciências nasceram e criaram suas verdades, houve o esforço incessante de duvidar, de refutar, de questionar. Tanto o é que as verdades de hoje não são as mesmas dos dias anteriores; tanto o é que criamos uma série de espíritos, mitos e religiões para povoar nosso imaginário com coisas oculta - e sempre gostamos disso.

Já que Felipe Pena quer falar da "natureza" do jornalismo, então vamos aqui afirmar que, caso exista, ela não é tão diferente da "natureza" das ciências. Afinal, ambas as atividades possuem o mesmo objetivo: buscar, codificar, criar e recriar verdades. Por isso, não podemos afirmar que o jornalismo nos esclarece o mundo porque temos medo do desconhecido; antes, ele nos oferece, todos os dias, a oportunidade de satisfazer nosso desejo de conhecer as coisas ocultas que tanto desejamos. O jornal deve ser entendido não como aquilo que nos tira as dúvidas e nos esclarece o mund, mas sim como aquele que nos coloca ainda mais frente a novas dúvidas e ao mundo das sombras.

17.4.08

aforismos desconexos OU por uma crítica à totalidade

I
Um pão francês não é um mero pão francês. Não se você paga 25 centavos nele. Aí esquece, meu filho... já entrou no cataclisma da totalidade e só sai de lá quando a classe proletária organizar sua festinha política e superar o sistema que te coage a comer alienação com gosto de frango assado - a não ser que frango assado esteja do lado proletário da totalidade, porque se estiver do lado burguês a coisa encrespa e tua diarréia despolitizada vai acabar dando em merda.



II
Ai ai ai, que saudade do meu mundinho fechado, quando tudo o que eu conhecia era apenas tudo o que eu conhecia e tudo o que eu conhecia era tudo de graça.



III
Ó Deus, será que a revolução vai abolir o Chester Sadia da ceia de natal!?



IV
Dúvida pequeno burguesa: golfinho é proletário porque é espertinho ou é burguês porque é cuti-cuti?

9.4.08

o novo mundo

a meu pai, que tanto amo



A morte pegou
seu Brás de repente,
e na manhã
daquele domingo
o mundo todo
já era
diferente.

Não mudou só pra
filha mais nova,
que ainda
nem tem o diploma
na parede, ou
para a outra mais
velha, que
o amava como se
ama a própria
vida, ou para a
esposa, que agora
se estica toda noite
sobre o vácuo
infinito de
uma cama de
casal.

Não, não é só
para os que viam seu Brás
comprar pão todas
as manhãs
frias de Bauru
que o mundo
mudou. Também para mim
,que o vi apenas uma vez,
o universo
perdeu seu equilíbrio
costumeiro.

Nunca
mais será o mesmo
o gosto da
fruta, nem o
cheiro
da terra e muito
menos me olharão
do mesmo jeito
os olhos deste retrato
de delegado que
,entre o silêncio e a distância,
esperam que eu diga
,ao menos uma vez na vida,
"pai, eu te amo".

Razões lógicas e filosóficas para não amar

I
O açúcar é doce.
A goiaba é doce.
O morango (e sua geléia) são doces.
O café é doce.
Um cigarro é doce (quando te queima por dentro os pulmões indefesos).
Um pedaço de carne podre é doce, tão doce quanto morrer em Londrina fumando cigarros e comendo torradas com geléia de goiaba.
A uva é doce.
O vinagre é doce.
O suor é doce.
O sêmem é doce (quando escapa à realidade do teu corpo).

Mas o amor não é doce.

II
O amor é só uma palavra
pela qual vivemos todos os dias de nossas vidas
- pedaço de vento que sequer move
nossos cabelos às quantro horas uma madrugada de terça-feira.

III
O machismo do meu caralho
,quando invade e fere e fode tua ideologia de vaginas,
esse machismo não
tem sabor,
nem cheiro,
nem peso,
tampouco me faz sentir diferente.
- tampouco deveria te fazer
deixar de sentir algo.

IV
O amor
,mom amour,
é um sentimento falido,
nada sente,
nada nos faz sentir.

V
O amor é pensamento, e pensamento
não nos toca por dentro
- sequer nos toca.

VI
O amor não é estética,
e a estética é a
única filosofia
que nos diz
alguma coisa.

8.4.08

Quando o mundo todo dá merda...

... a gente só quer nadar nas artérias da baleia azul e ser destruído por anticorpos assassinos.

(da série "Pica é Pica, Dita é Dita e quem tá no meio é bixa")