23.7.08

Do que diz o silêncio

Todos os dias em que
meus dedos dóem
e meu olho
dóe e meus
pés sangram e minhas
gengivas salivam
ferro e chagas
na ponta da
língua, todos esses
dias eu sei que tudo
se vai e não volta,
e que as pessoas
se vão com seus corpos
e na memória de cicatrizes
só o que fica é o
novo;

ela me ama
,eu sei,
como quem chora sozinha
no aconchego do quarto
e queria morrer
rasgada pela
fúria do
próprio
corpo.

21.7.08

O rabo do burro

Chega um dia em que a gente percebe que continuar não dá. Você olha pra trás e quer voltar, desesperadamente, quer teus amigos de volta, quer aquele velho cheiro de cerveja universitária que paira como neblina na fria imagem da tua memória. Você olha pro lado e a porta do quarto é sempre uma entrada cercada de paredes, nunca uma saída para o jardim; tua casa é uma caixa, tua tevê é uma janela tampada por espelhos. Não há mais caminho a percorrer, e se há algum é uma mata virgem, tão virgem quanto você era antes de sentir na pele o arrepio do teu primeiro beijo, do teu primeiro abraço, o medo que precede teu primeiro orgasmo, o toque duma mão fria no calor do entre-pernas. A velha frase de Gullar nunca fez tanto sentido : "caminhos não há, mas os pés sobre a grama os inventarão". Algumas lágrimas escorrem de vez em quando (mas de onde?, de onde?), e você quer correr, mas não há jardim com grama macia, nem o útero quente de tua mãe. A saudade quer que você volte, mas a vida é uma corrida, e em corridas não se engata a marcha a ré.

Apesar de tudo, eu queria que a gente sorrisse, que a gente se desse essa chance; eu queria que tudo o que passou fosse só uma piada mal contada, e que daqui em diante não fosse necessário planejarmos a humana arquitetura dos edifícios de carne, o urbanismo dos sentimentos, quadriculados de ruas e avenidas que desembocam no coração; que a gente risse como ibecís com o gosto selvagem do futuro sangrando em nossas bocas; eu queria que a gente ficasse com os olhos vedados enquanto brincamos de ser gente grande e tentamos, como crianças bestas em festa de aniversário, encaixar o rabo no desenho do burro.

17.7.08

Seqüestro relâmpago

Eu nem percebi quando ele
passou pela sala
e tocou meus
pés debaixo
da coberta
em que tentava
esconder-me.

Puxou-me pro chão, pisou
em minha cara, riu
de mim, disse que
eu não podia ficar aqui parado
enquanto o mundo
pegava fogo lá fora
me esperando pra
tomar um café com
o futuro.

Depois sentou ao meu lado
me olhando sangrar,
tirou do bolso o jornal
para ler os quadrinhos
e disse que só sairia de lá junto
comigo, que me levaria com ele
, que não adiantava
fingir que ele não
existia.

Eu o olhei com medo.

O que eu poderia
fazer? Brigar
com ele que não ia,
porque era luta perdida
antes mesmo de começar. Eu havia
adiado aquele encontro por
anos e anos, e no fundo
eu sabia que ele vinha
me pegar, só não
me dei conta de que ia
ser hoje, aqui, assim
de sopetão, enquanto
assistia ao Rambo e
percebi que havia
uma guerra lá
fora e eu não
poderia ser
o filho do meu
pai pra sempre;

o Tempo me
sequestrou
e não pediu
resgate.

14.7.08

Homem não chora

Vinte anos se passaram desde o dia em que aquela casa pegou fogo, mas o garoto se lembrava bem da face do policial que o tinha salvado, o soldado Paulão. Foi por isso que, ao vê-lo na rua, parou para cumprimentá-lo, agradecê-lo por sua própria vida.

- Seu polícia, o senhor se lembra, seu polícia?. Se não fosse pelo senhor, eu era pra tá morto. Lembra?, minha casa pegando fogo e o senhor entrou lá pra pegar o velho?

Não se lembrava da fisionomia do garoto, mas ele sabia bem qual era a cara do pai, o velho Beto Setegoles, famoso no bairro pelas gritarias que dava quando chegava bêbado em casa. Costumava bater na mulher, o safado, depois dos tão famosos sete goles de cachaça que tomava antes de ir embora do bar, pra fechar as noites como o líder dum bando de nove bêbados comedores de batata em conserva.

Era prática da polícia, quando recebia denúncia confiável, bater de madrugada pra acordar homem covarde que batia em mulher e criança. Famosas pelo resultado preventivo, chamavam entre os soldados de "operação capa macho", e consistia em três procedimentos simples: um sacode, uns tapas "de leve" e, em último caso, alguma brincadeira de mal gosto. É que, em homem desses, não são os nervos do saco que dóem, mas o próprio saco. Capava-se logo ali o macho, que virava uma doçura de garotinha, promentedo tudo o que se quisesse, do "deus te abençoe" ao "juro por Deus".

O Setegoles era a terceira biba da lista naquela noite. Soldado Paulão comandava mais três homens, todos armadados até os dentes - e, se precisasse, os próprios dentes seriam uma arma. Era procedimento simples: pulavam o muro, seguravam o grandalhão, davam o aviso; os reincidentes eram botados no carro, levados pro mato, fazia-se o serviço e os devolviam são e salvo para a família - mais salvo que são, no caso.

Quando entraram na casa, a luz acesa no banheiro já indicava que aquilo ia dar em merda. Mas polícia não leva a sério pressentimento, só o instinto, o reflexo, as ordens. Entraram ali mesmo, encheram a mão na boca de cachaça do velho e o levaram em silêncio pra sala. Com treze doses dentro na cabeça e uma arma fora, os miolos quentes estão prontos pra ferver; só é preciso uma faisquinha num montinho de pólvora.

- Escuta aqui seu filho da puta, seu cagão de merda; a gente tá sabendo o que você faz com a tua linda esposa, e não tô falando da foda que cê dá nela quando ela tá com dor de cabeça não, tamo falando daquilo que o senhor já sabe; pois o senhor também sabe o que um filho da puta que nem o senhor precisa aprender na nossa mão, já que não aprendeu na escola; então fica avisado nessa primeira e, tomara a deus, única visita: a próxima vez que essa mulher tiver um roxo sequer acima da cintura, a gente vai voltar aqui e deixar vários roxos em cima da cintura de um velho bêbado covarde. Tamo entendido?

Ele não era besta. Setegoles concordou com a cabeça, com a boca, com a mão... até o rabinho apertado que não passava agulha concordava com soldado Paulão naquele momento. Homem que é homem só não é homem diante de outro homem, já diria um homem qualquer.

O esperado? O de semprem: a polícia vai embora, o bêbado se redime e tem casos em que até pára de beber, ou separa, ou foge. O importante é sempre que a violência seja evitada. Mas se fosse assim, tão simples quanto parece, o caso nem virava história. Duas horas mais tarde, já atrás da quinta biba da noite, soldado Paulão recebe a mensagem do rádio: vizinhos reclamando de gritaria na casa do Setegoles; a coisa tava feia.

Chegando lá, o grande fogo saindo pela pequena janela do barraco. Deram de cara com a mulher e o filho do bêbado, chorando e apanhando na cozinha em chamas, sujos nas roupas com sangue e fumaça. Sem pensar, os quatro polícias apontaram a arma e o agarraram. Os bombeiros vieram apagar o incêndio, mas a viatura já havia levado Setegoles para o matagal.

Os soldados esperaram o velho ficar são. Já era quase de manhã quando o penduraram de ponta cabeça, com os pés amarrados numa árvore. Encheram seu rosto de batom cor de rosa. O apelido ficou "Shyrley", com dois Ys mesmo. Um pequeno corte na virilha, por onde o sangue escorria devagar. Paulão enchia a boca de cachaça e cuspia em cima do corte, para que ardesse...

- É pra arder no lugar certo, Shyrley. Parece que você tá menstruada, Shyrley. Me desculpa, Shyrley, mas acho que você agüenta. Você costumava ser machão, Shyrley, até batia em mulher. Me diz, Shyrley, você dava murro e puntapé ou puxava o cabelo chamando de "piranha"? Você gosta, Shyrley, que te enfiem no cu? Shyrley, você dá gostoso? Temos três soldados fortões pra você, Shyrley querida, cada um com um cacetete do tamanho ideal pra que você sinta o que merece sentir, sua vadia. Pare de gritar, Shyrley, está nascendo um dia bonito... aposto que você vai querer contar pro teu garoto, aquele cheio de hematomas, sobre as novas cicatrizes que você conseguiu com a gente, Shyrley, uma no rabo e a outra nessa tua pança gorda. Shyrley, você é linda. Nosso batalhão te ama, Shyrley. Por isso, vamos fazer questão de dar com o cacetete nesse teu saco imprestável que fica no meio das pernas...

... e continou, por horas, até Setegoles...

- ... chorando então, Shyrley, minha querida? Tá chorando a menininha? Shyrley, não chora não, querida, a gente te ama, na alegria e na tristeza, principalmente na tristeza, querida. Soldados, digam à Shyrley que a gente a ama, que a gente adora esse cuzinho peludo dela. Vamos beber uma cachaça lá em casa, Shyrley? Depois que eu terminar de foder esse teu rabinho, eu acho que vou te dar umas bofetadas, igual você fazia com a tua mulher... Fazia, Shyrley, porque, até onde sei, você não faz mais isso, não é verdade? Não é verdade, soldados?

Até o dia em que morreu, Setegoles não botou um pingo de cachaça na boca, e a vizinhança nunca mais escutou os gritos que a mulher dava toda semana, sempre que apanhava do velho.

- Meu pai morreu ano passado, seu polícia, ataque cardíaco. Depois daquele dia do incêndio, que o senhor me salvou, nunca mais ele me bateu, nem em mim nem em minha mãe. Aquele dia ele ia me matar, eu senti, ele tinha tanto diabo no corpo que vazava no vermelho dos olhos. Eu te vi na rua e não podia deixar de te cumprimentar, se não fosse o senhor, que seria de mim? Muito obrigado, viu, obrigado mesmo, o senhor é um santo. Já salvou muita vida, né? Meu próprio pai dizia que o senhor que o tinha salvado, que tirou o diabo dele do corpo. Graças a Deus que o senhor existe.

Paulão foi embora depois dos dois tapinhas que deu no ombro do garoto, bem em cima da tatuagem feita para esconder a cicatriz de uma queimadura. Tinha outra na perna, também sobre as marcas de queimado. Uma era um anjo, a outra, um dragão cuspindo fogo. Por isso que ele era conhecido nos bares da cidade como o Dodô dastatuage. Diziam que o anjo o ajudava a chegar em casa vivo, e que o dragão era o que o fazia ficar de fogo todo dia, perambulando pelas ruas.

Sete dias depois de agradecer seu policial salvador, Dodô foi preso por conta de uma garota de 15 anos que estuprou e matou. Morreu na cadeia vestido de mulher. O batom que passaram em sua boca era o próprio sangue.

Paulão foi ao enterro, botou a mão no queixo, fechou os olhos e derramou uma lágrima.