26.2.07

A sacada deixará
saudades. Nela já fumei muitos
cigarros, bebi muito café, contei
histórias de circo, mulheres
barbadas e longas madrugadas. Foi lá, aliás,
que ri ao ver as estrelas e
pensar “E que diferença
elas fazem por
estarem aí? Talvez
fizessem se estivessem
no meu bolso”.

É só o presente, mas já sinto
tanta falta. Foi aqui, onde agora
tomo o último copo de
café e puxo o último
trago de cigarro, que
ficamos bêbados e discutimos entre
amigos nossos dias de heróis vendo
a Rua Belo Horizonte e
sua estranha calma
solitária.

É estranho, mas é verdade. Essa sacada deixará
saudades, até porque
o novo apartamento só tem janelas – é uma
pequena cela onde você vê
a rua mas não a sente. A única brisa
será a do ventilador, e o cheiro das
ruas não entrará mais na sala.

Como pesa isso de
encaixotar meus livros, minhas fotos,
a roupa esquecida do Zé Davi
– um pedacinho que sobrou dum amigo que
partiu, como agora eu
parto. É tão simples: só estamos mudando
de casa!, mas é como se morrêssemos
ao deixá-la – igualzinho à morte
escondida num gole de
café, num trago de
cigarro, numa boa trepada
com uma puta qualquer.

E tão de repente me flagro pensando
seriamente: “Todos passamos nessa
vida” e, logo em seguida, penso ao
som do próprio riso “cara,
como somos clichês! Vivemos
buscando coisas novas mas só
estamos rodando como
água de privada.”

Sacou? A vida é uma piada: o amor é
um circo, a morte é um vício
e a casa não é nada.
A eternidade é essa coisa
estranha que preocupa
os sedentários, os urbanos,
homens que não
conseguem mudar
sem deixar de sentir um
vazio no peito,
esse sentimento de
perder coisas tão pequenas quanto
uma mulher,
uma festa,
uma briga,
uma brisa,
uma vida,
uma casa com sacada.

20.2.07

Todas as festas de amanhã

Eu e minhas coisas vivemos
num eterno conflito: é a guerra
entre o que deixei de bom
pro mundo e o que o mundo
me impediu de deixar de bom pra ele. Tenho essas
coisas e elas me têm na mesma proporção
em que almoço, respiro, cago,
me levanto pro trabalho. Já não
olho mais pro céu
e me pergunto“o que faremos
amanhã?”, porque
todas as respostas
já estão em minhador-de-cabeça.

Tenho medo desse futuro
tão conhecido, tão familiar. Amanhã
minha mãe ou meu
pai morrerão e finalmente
vão parar de reclamar de
tudo o que faltou
em suas vidas: uma filha!
um carro mais caro! um
médico na família! mais
comida no prato!

Eu não fui médico, nem
vidente, nem padre (Deus é pai!). Preferi
essa vida estranha dedúvidas limitadas,
onde as coisas que eu compro
me possuem enquanto
finjo que não conheço o futuro. Tenho
sempre a arma na cintura, o medo
nos olhos e uma fina dor
no peito – é meu enfarto
me esperando. Perco tempo com
poemas e
,quando menos percebo,
sou só meu pai com
outras rimas e
outro emprego.

13.2.07

a falta

Ainda perguntavam-se como aquilo aconteceu. Por que o pobre garoto estava lá, com os braços cruzados sobre o peito? Quem no mundo julgava tal barbaridade? Tias e tios de toda parte apareceram. Presentes, amigos e amigas prestavam homenagem. A rua inteira foi até o velório.


- Viu só que desastre? Como justo ele, meu vizinho, o João? Comé que pode uma coisa dessas? Tanta vida pela frente. Ah... meu Deus... Que tragédia...


Na direita do pobre caixão, o pai. Mão na cabeça, olhava baixo. Os olhos úmidos. Via o filho, ali, desvivido. Chorava de pouco-em-pouco. Escutava os comentários ao redor como quem já sabia os porquês. Se tivesse aceitado...


- Ai! Me contaram. Nem acreditei. Cadê o corpo? Quero vê como tá. Tão moço, bonito. Disseram que brigou com o pai ontem...


A mãe, sentada à beira da sala, recebia pêsames de parentes, amigos e alguns desconhecidos. De vez em quando, olhava com rabo-de-olho pras poucas flores num vaso em cima da mesa. Eram a coisa mais viva ali.


- Como é que pode um moço tão bonito? Moço bonito não devia de morrer assim. Podia de qualquer forma, menos essa. Filho único ainda...


Logo carregariam o corpo pro seu fim. O pai, o primo, o tio e o padrinho. Orgulhosos, levaram-no dali pra gaveta (os cemitérios urbanizaram-se hoje em dia). Sem terra, enterraram-no.


- Coitado. Com um tiro na boca? Nossa Senhora.... Tem que ser corajoso... Coitada da família. Deus me livre... Suicida vai pro inferno, ainda mais ele: disseram que era meio afeminado...


De volta à casa, o pai procurou uma foto do filho. No outro dia, bem cedinho, compraria o primeiro porta-retrato daquele lar. A mãe foi para o quarto do garoto. Procurou seus cadernos para finalmente conhecê-lo melhor. Descobriu tudo o que já sabia e não quis saber. Nunca amaram tanto Joãozinho como naquele instante, e Joãzinho nunca foi tão feliz.

4.2.07

As veias da cidade
sangram tanto
quanto as do
teu corpo.

Nelas correm baratas,
vaza o esgoto, corre tua mãe
hipócrita - nua
e solitária. Na rua
o vento frio te corta
a face rosada, te sangra
os dentes, desmancha o
véu paterno que te protege.

Noturna, a
cidade não tem lua
pros teus olhos, nem
cura pro teu câncer.

A vida é suja:
a rua é
tua casa; a
puta, tua
mãe.