24.3.09

Quem de nós saberia o motivo de não querer paz alguma e torcer, desesperadamente, para que o chão se rache e teu peito exploda? Há uma bomba no meu peito, vermelha e constante, que não explode sem me levar com ela. Eu tenho em mim uma bomba de carne, uma bomba que não explode.

O gato por dentro

Eu tenho um gato no coração,
um gato negro que
pela noite camufla
os pêlos densos
e só se deixa
ver pelo mistério
iluminado dos
olhos.

Eu tenho em mim
um gato, escondido,
lá no fundo, que se
todos o vissem
nas madrugadas,
não seria mais um gato,
não seria mais
um gato, não seria
mais.

Eu tenho um
gato por dentro.

Um gato
por dentro,
que me arranha
em fúria a carne
do peito e
se insinua
no brilho
do fundo
dos
olhos.

22.3.09

Há uma estranha calma no ar.

O vento é frio,
mas pelo menos se move.

Eu não me movo.

Quando o vento bate
nos braços,
doem-me os ossos.

Os ossos são
as coisas mais duras,
mas as que mais
sentem medo
do frio.

Eu tenho em mim ossos frios,
de onde brota
uma dor
estranha.

17.3.09

Eu já não tenho medo.

Me tornei um homem que, de tanto perder, perdeu seu medo de perder.

Minha doença é estar vacinado.

Eu sou um homem vazio por dentro,
e por fora nem um sorriso hipócrita carrego.

Sou um cara sem desejos e ambições.

Sou um peso para as portas
,como as tartarugas de areia,
mas parado ao pé das portas fechadas.

Eu tenho em mim a estranha certeza
das coisas inanimadas.

12.3.09

Os pecados de domingo

Essa vontade idiota
de tudo ter
nas mãos e de todos
os livros do
mundo ter decorados,
para citá-los
na hora do
desespero; isso não
serve para
nada.

Há mais fúria
no café do domingo
que nas mais
sangrentas
guerras civís.

De manhã, quando o
sino da igreja
soa, todos os
nossos pecados são
intimados a
comparecerem ao
altar; mas eles não
vão. As pessoas
realmente felizes
ficam em casa,
cultivando seus pecados,
lavando as roupas de toda
a semana, chorando como
crianças quando
os seus joelhos
se ralam,
beijando a mulher
que se ama,
penetrando-a
com o riso no canto
dos olhos... do
que seria a vida
sem a santa
fúria de todos
os pequenos
pecados do mundo aos domingos
de manhã, sem as
tristezas bobas
que nos deixam anciosos,
sem o desejo besta
de brigar por
causa do último
pedaço de bolo com
o teu irmão pentelho?

Quem seria tolo de querer
,finalmente,
a paz eterna?, a calmaria
dos ventos polares?, a estranha
sensação
daqueles que já morreram
,sem dor alguma,
enquanto respiram
em pé aliviados?

7.3.09

Sei que as coisas
tem sua forma
e seu cheiro,
sua carne e o sangue
que delas escorre
quando as cortamos
com as palavras. Mas também
sei que não há como esquecer
o que se fala quando
o cheiro da
carne nos invade
as entranhas.

Não sou muito diferente
do lixo que jogo
fora. Se não sou
a merda que
cago, é uma mera
questão poética
dos intestinos.

Os homens são feitos de
palavras mais do que
ossos, gordura,
pele, matéria morta,
os 73% de água
e um coração
cansado; não são
o peito e as axilas
tão cabeludos quanto
as palavras
que deles
brotam ou
que neles
se instala.

O homem é esse bixo estranho
feito de palavras,
que não cheira a comida
que come,
que beija a mulher que ama
e que escreve poemas
na madrugada.

a cicatriz do mundo

Um dia eu vou embora. Um dia eu coloco meus sapatos mais confortáveis, abro a porta de casa e vou embora sem pagar as contas. Eu vou embora, e não terei medo que cortem meu telefone, minha internet, meu celular. Eu não terei mais medo de deixar as coisas imóveis, intactas, nem ficarei irritado quando o lixo se encher de bigatos. Eu não terei medo de que algo ruim aconteça. Um dia eu vou. É assim com todas as coisas. É assim, com todas as coisas... E quando eu me for, as pessoas serão outras pessoas, e o velho feio e simpático que serve café na padaria vai te olhar de uma forma toda diferente. Todas as calçadas serão um santuário onde você não saberá em que desenho pisar. Quando eu me for, o mundo vai desabar, e com ele as coisas que você sempre fazia. A tua cozinha, o teu banheiro, o restaurante em que você sempre comia. Quando eu me for, as coisas terão outro cheiro, e os domingos terão um gosto diferente das macarronadas de domingo. Os livros da estante cairão como meteoros, e os dinossauros se desenterrarão da terra, como topeiras, e o sol os cegará com sua imensidão. Haverá no ar um certo lirismo de que não se pode escapar, e eu sei que, mesmo quando as correspondências chegarem para a mesma pessoa no mesmo endereço, o remetente não será o mesmo, e os números da tua conta serão em algarismos romanos. Quando eu colocar o pé pra fora da sua vida, seja com uma bala na cabeça, um escorregão na beira do lago, um suspiro doente de ancião, um terremoto, uma enchente, um furacão, um medo de viver, uma privada irritada que me sugará para as profundezas do esgoto... seja como for, quando eu me for, eu vou e tudo será diferente. Tudo será diferente, e assim eu espero. Eu estaria morto e acabado se eu ficasse aqui para sempre e soubesse que, se eu partisse, o mundo não teria partido no meio e engolido a realidade com a força dos meus passos. Um dia eu fujo... um dia serei uma memória do passado, e muito mais que isso. Serei os vulcões silenciosos dos teus olhos, serei o amor que você tem pelo seu gato, serei o gole quente de café, serei o seu livro em branco, a sua nuvem em dia se sol, o desespero calado dos que estão em casa assisttindo à tevê, as formigas que invadem o pão sobre a pia, o dia, a noite, a vida. Um dia, eu serei tudo isso, mesmo que você não saiba, mesmo que você me odeie, mesmo que você me esqueça de verdade... Um dia eu me vou e te deixo o que de melhor pude deixar. Eu prefiro ir para longe e rasgar com as unhas a tua carne do que ficar para sempre ao teu lado, sorrindo. Um dia eu serei a própria cicatriz do mundo - do teu mundo, aquele que escorrega por dentro dos teus olhos encharcados. Antes isso, antes isso, antes isso, com certeza, que passar pela tua vida e não tê-la transformado em fúria.

5.3.09

Tudo o que eu mais queria num supermercado

Eu só queria comprar
o brócolis. Eu
só queria
pegar o brócolis e
levá-lo para
casa. Não importa
se o brócolis é um alimento comum,
barato , que se encontra
em todo lugar
e que na quitanda da frente
de casa custa
só 2 reais o
pé. Não me importa que
terei que o levar na minha
mala numa viagem longa e cansativa,
e que quando ele chegar esteja amassado
como se todos os famintos
do mundo o tivessem
pisoteado. Eu não me importo,
eu queria o brócolis
que estava ali, a 300 Km
de onde eu moro, se mostrando
tão verde quanto
o lado de dentro
do meu nariz e gritando junto
com a placa da promoção 0,60 centavos
"me compre, me compre".

Não importa que não
fosse um bom
negócio; não me importa
que a mandioca era mais
barata. Eu não queria
a mandioca. Eu queria
o brócolis.

Eu só queria comprar o brócolis e levá-lo pra casa.

Eu só queria comer o brócolis
,aquele brócolis,
e sorrir o sorriso bobo
de todos os dias em
que me lembro
que a felicidade aparece de repente,
e é verde, comum e barata.